Wednesday, January 31, 2007

Convicções científicas - Michael Polanyi.
(Expandido do The Nineteenth Century, 1949).

Existem muitas piadas sobre a futilidade de se filosofar, e é verdade que a ciência é uma ocupação que se assemelha aos negócios, na qual cada conquista, por modesta que seja, pode proporcionar grande satisfação. Pois lá está o trabalho realizado, público, compelindo atenção urgente e permanente; ele é a prova de que, por um momento, foi permitido que se fizesse história intelectual. Desvendou-se alguma coisa até então desconhecida e que – assim se espera – dali por diante permanecerá conhecida enquanto durar a memória de nossa civilização.

Alguns filósofos do século passado ficaram tão impressionados com essa espécie de conquista positiva que decidiram liquidar com toda a filosofia, repartindo seus diferentes temas pelas diversas ciências. Numerosas ciências que tratam do homem ou das questões humanas foram criadas àquela época e pareceram cumprir suas finalidades. A Psicologia e a Sociologia foram aclamadas como principais herdeiras desse compartilhamento da substância da filosofia.

Essa filosofia-para-acabar-com-toda-a-filosofia pode ser designada, embora algo frouxamente, como Positivismo. Ele deu continuidade, nos séculos XIX e XX, à rebelião contra a autoridade das Igrejas, iniciada nos dias de Montaigne, Baco e Descartes; mas se propôs não apenas a liberar a razão dos grilhões da autoridade como também a desfazer-se de todas as idéias tradicionalmente orientadoras, desde que não demonstráveis pela ciência. Destarte, no senso positivista, a verdade passou a ser identificada – pela crítica positivista da ciência – como uma simples ordenação da experiência.

A justiça, a moralidade, os costumes e a lei mostram-se agora meros conjuntos de convenções, carregados de aprovação emocional, que constituem o próprio estudo da sociologia. A consciência é identificada como o medo de quebrar convenções socialmente aprovadas, e sua investigação é atribuição da psicologia. Os valores estéticos são relacionados a um equilíbrio de impulsos opostos no sistema nervoso do observador (2). Na teoria positivista, o homem é um sistema que responde regularmente a uma certa faixa de estímulos. O prisioneiro torturado por seus carcereiros para que revele os nomes de seus confederados, e, da mesma forma, os carcereiros que o torturam com esse propósito, todos estão meramente registrando respostas adequadas para suas situações.

Sob a orientação de tais conceitos, espera-se que sejamos verdadeiramente indiferentes a objetivos em nossa abordagem para o mundo como um todo, inclusive com nossos eus e com as questões humanas. O homem científico deve dominar tanto seus conflitos interiores como os de seu ambiente social e livrar-se das ilusões metafísicas, recusando a submissão a quaisquer obrigações que não se enquadrem em seus próprios interesses.

Tal programa implica, é claro, uma ciência “positiva” em si, no sentido de que não envolva afirmação de crenças pessoais. Como isso é, de fato, falso – como pretendo demonstrar -, não surpreenda que o movimento positivista, tendo inicialmente elevado a ciência para o arbítrio universal. Agora ameace subverte-la e destruí-la. A tensão entre o marxismo e a ciência, que fez sua aparição na Rússia soviética e que se tornou persistentemente mais intensa nos últimos quinze anos, é uma manifestação dessa ameaça e uma conseqüência lógica do conflito entre as aspirações do positivismo e a natureza autêntica da ciência.

2 Somente o último item desse lista requer evidência que lhe dê apoio, para a qual veja The Principles of Literary Criticism, de I. A. Richards (1924), pp. 245, 251 (edição de 1930)


II

Estaremos colocando nossa própria atitude em relação à ciência numa melhor perspectiva se, por um momento, fizermos uma digressão sobre outras formas de conhecimento que não fazem parte da ciência e que a maioria de nós considera inadequadas. Tomemos a bruxaria e a astrologia. Suponho que ambas são consideradas falsas pelo leitor; porém, isso não é uma unanimidade, mesmo hoje em dia. A bruxaria, por exemplo, vem sendo praticada por povos primitivos de todo o planeta. Para enfeitiçar alguém o bruxo se apropria de alguma coisa relacionada com a vítima, tal como uma mecha de cabelo, um osso que ela tenha cuspido ou outro qualquer excremento, e a queima, pronunciando uma praga de sua autoria. A crença é de que isso funciona, e é comum entre esses povos primitivos atribuir, invariavelmente, o incidente da morte aos efeitos do sortilégio.

Ora, se perguntamos “O que é bruxaria?”, é claro que não podemos dizer que “é a destruição de seres humanos pela queima de uma mecha de cabelo, etc.”, porque não acreditamos que o homem possa ser morto dessa forma. Temos que dizer que “Existe uma crença na bruxaria, de que não partilhamos, que afirma ser possível matar uma pessoa se for queimada uma mecha de seu cabelo.” Da mesma forma, não podemos definir astrologia como um método de predição do destino das pessoas pela análise de seus horóscopos, mas poderíamos apenas descreve-la como uma crença – de que não compartilhamos – de predição do futuro pelos astros.

Naturalmente, o feiticeiro e o astrólogo diriam coisas diferentes. O primeiro poderia asseverar que a bruxaria é o modo de matar um homem pela queima de uma mecha de seu cabelo, ou algo parecido; o segundo descreveria a astrologia como a arte de predizer o futuro pelos horóscopos. No entanto, pressionados por nosso pessimismo, eles estariam dispostos, sem dúvida, a refazer seus relatos sobre bruxaria e astrologia para declarações de formas semelhantes às nossas definições, trocando as palavras “uma crença de que não partilhamos” pela expressão “uma crença de que compartilhamos”. Nessas bases, concordaríamos em discordar.

Tudo isso tem aplicação óbvia na ciência. Qualquer declaração sobre ela que não a descreva explicitamente como alguma coisa em que acreditamos é, na essência, incompleta e uma pretensão falsa. Trata-se da alegação de que a ciência é essencialmente diferente e superior a todas as crenças humanas que não forem declarações científicas, e isso não é verdade.

Para mostrar a falsidade de tal pretensão, talvez baste recordar que a originalidade é a mola mestra da descoberta científica. A originalidade na ciência é o dom de uma crença singela numa linha de experimentação ou de especulação até então considerada incapaz de dar dividendos. Os cientistas passam todo o seu tempo apostando suas vidas, aos pouquinhos, numa crença pessoal atrás da outra. No momento em que a descoberta é proclamada, que a crença singela se transforma em pública e que existem evidências que a favorecem, produz-se uma resposta entre os cientistas que pode variar numa extensa gama entre a aceitação e a rejeição. Se uma determinada descoberta será aceita e ainda mais desenvolvida, ou desencorajada e mesmo asfixiada no nascedouro, dependerá da espécie de crença ou descrença que ela desperte na opinião científica.

Exemplificando, vamos considerar a sugestão excêntrica que apresento mais adiante, onde é buscada uma correlação entre o período de gestação de alguns animais e os múltiplos do número π. A rejeição não-hesitante da ciência a tal correlação é o ponto de vista relativamente recente. Para um cientista como Kepler, a relação sugerida não seria tão repugnante. Ele próprio derivava a existência dos sete planetas conhecidos ao seu tempo e o tamanho relativo de suas órbitas da existência de sete sólidos perfeitos e dos tamanhos relativos de suas esferas inscritas e circunscritas, mantido constante o comprimento das arestas de todos os sólidos. A ciência de sua geração ainda perseguia com constância a suposição pitagórica de um mundo regido por determinadas regras e relações geométricas. Os termos pelos quais a ciência daqueles dias interpretava a natureza não mais aceitos hoje em dia.

Levaria muito tempo se eu tentasse detalhar os sucessivos estágios através dos quais as premissas da ciência passaram dos tempos de Kepler para o nosso. O principal período, de Galileu a Young, Fresnel a Faraday, foi dominado pela idéia de um universo mecânico consistindo na matéria em movimento. Isso foi modificado pelas teorias de campos de Faraday e Maxwell, mas não mudou radicalmente enquanto se sustentou o postulado do éter material. Até o fim do século XIX, os cientistas acreditavam implicitamente na explicação mecânica de todos os fenômenos. Nos últimos cinqüenta anos, essas premissas da ciência foram abandonadas, porém não sem antes causar considerável retardo no progresso das descobertas que eram inacessíveis com tais premissas. Um bom número de provas da existência do elétron estava disponível, havia bastante tempo, antes que fosse ultrapassada a resistência oeferecida pela suposição de que todas as propriedades da matéria tinham que ser explicadas pela massa em movimento,

Uma suposição inteiramente nova, com base na filosofia de Mach, foi introduzida na ciência pela teoria da relatividade de Einstein. Mach se propusera a eliminar todas as tautologias das declarações científicas; Einstein supôs que, pela alteração de nossas concepções de tempo e espaço segundo as linhas de tal programa, seria possível conceber um sistema que eliminasse algumas anomalias existentes e, possivelmente, levasse a novas conclusões verificáveis. Tratava-se do método epistemológico que, hoje em dia, está firmemente enraizado em nossa concepção do universo.

A firmeza de nossa crença na nova concepção, epistemologicamente esquadrinhada, de tempo e espaço pode ser ilustrada pelo seguinte evento. Em 1925, o físico americano D.C. Milner repetiu, pela primeira vez depois de uma geração, o experimento de Michelson sobre o qual a teoria da relatividade se baseara originalmente. Equipado com os instrumentos mais modernos, ele achou que tinha o direito de checar aquelas observações bastante veneráveis do grande mestre. Seus resultados contradisseram os de Michelson, e ele os apresentou perante um grupo muito representativo de físicos. Entretanto, nenhum deles pensou num instante sequer em abandonar a teoria da relatividade. Em vez disso – como certa vez Sir Charles Darwin relatou -, eles mandaram Milner de volta para casa para corrigir seus resultados.

A função exercitada dia a dia pelas crenças científicas na regulação da resposta dada pelos cientistas a publicações correntes pode ser ainda mais bem exemplificada por um par de situações que demonstram ser uma interessante comparação. Em 1947, dois artigos de renomados físicos do Reino Unido surgiram quase simultaneamente, e sua recepção por parte da opinião científica constituiu contraste gritante. Um dos artigos foi publicado no Proceedings of the Royal Society, em junho de 1947, por Lorde Rayleigh, distinto membro da sociedade. Nele eram descritas algumas experiências simples que provavam, na opinião do autor, que um átomo de hidrogênio, se introduzido num fio metálico, poderia transmitir a esse fio energias que chegavam a uma centena de elétron-volts. Uma observação dessas, se correta, teria imensa importância; seria bem mais revolucionária, por exemplo, do que a descoberta da fissão atômica por Otto Hahn, em 1939. Todavia, quando o artigo apareceu e eu pesquisei as opiniões de vários físicos, eles, simplesmente, deram de ombros: não achavam nada de errado na experiência, mas não acreditavam em seus resultados, nem consideravam que valia a pena repeti-la. Como Lorde Rayleigh já faleceu, o assunto parece que foi esquecido.

Quase ao mesmo tempo do artigo de Lorde Rayleigh (maio de 1947), o professor P.M.S. Blackett publicou o fato de que uma relação simples entre o momento angular e o magnetismo estelar era aplicável à Terra, ao Sol e a uma terceira estrela, cujos dados se estendiam por larga faixa de valores. Tal comunicação, conquanto mais parca quando comparada com a de Rayleigh e sem significação óbvia, foi recebida como descoberta importante. Na realidade foi uma recepção excepcional: o discurso original foi publicado na íntegra pela Nature logo depois de pronunciado na Royal Society, e a imprensa diária encarregou-se de reproduzir longos extratos dele, com fac-símiles das fórmulas propostas e manuscritas pelo próprio Beckett. Não poderia ter sido concentrada maior atenção sobre uma nova contribuição para a ciência.

Tenho certeza de que, trinta anos antes, a reação teria sido exatamente a contrária. Antes da descoberta da relatividade geral, a espécie de relação sugerida por Blackett teria sido recebida com indiferença, como uma curiosa coincidência numérica a mais, das quais tantas já existiam; enquanto as observações de Lorde Rayleigh seriam aclamadas por sua atualidade, de vez que não demonstrariam incompatibilidade com as teorias entãos correntes com relação à natureza dos processo atômicos.

O que vemos aqui, então, é a função vital exercitada pelas crenças em voga quanto à natureza das coisas em relação ao estágio do desenvolvimento científico. Pode ter muito bem ocorrido uma crença inadequada da opinião científica em uma das situações descritas, ou talvez nas duas. Porém, isso não invalida o exercício de tais decisões fiduciais, já que, sem elas, a ciência não poderia operar em absolutos.

Tal fato tem que estar em nossas mentes quando testemunhamos erros sérios cometidos pela opinião científica, cerceando novas descobertas, como, por exemplo, no memorável caso oferecido pela história do hipnotismo. O processo hoje denominado “hipnose” parece ter sido conhecido por pessoas não-científicas de épocas remotas. O poder dos sortilégios entre as tribos primitivas pode ser devido à hipnose. As práticas dos faquires hindus são outros exemplos dela, e muitas performances mágicas, bem como alguns reputados milagres cristãos, podem ser hoje explicados com base na hipnose.

No entanto, nossas crenças fundamentais da ciência surgiram inicialmente em oposição direta às crenças na bruxaria e nos milagres, e, portanto, os antigos fatos do hipnotismo não encontraram lugar na nova perspectiva científica. Eles foram ignorados, juntamente com as incontáveis superstições que a ciência veio a suplantar. Quando os fatos foram trazidos novamente à luz por diversos cientistas, há certa de dois séculos, suas observações foram mansamente descartadas pela ciência. Então, pelo fim do século XVIII, a questão atingiu um ponto crítico com a demonstração pública de um tal Friedrich Anton Mesmer, médico clínico vienense cujas curas hipnóticas trouxeram-lhe fama em toda a Europa. Comissões científicas investigaram repetidamente os fatos produzidos por Mesmer e trataram de negá-los ou invalidá-los pela explicação. No final, Mesmer foi à falência, sua arte foi desacreditada, e ele mesmo, estigmatizado como impostor. Uma geração mais tarde, outro pioneiro do hipnotismo, Elliotson, professor de Medicina na Universidade de Londres, recebeu ordens das autoridades universitárias para descontinuar seus experimentos hipnóticos; em conseqüência, ele renunciou à cátedra. Quase ao mesmo tempo, Esdaile, cirurgião a serviço do governo da Índia, realizou mais de 300 operações importantes com anestesia hipnótica, mas os periódicos médicos recusaram a publicação do relato de seus casos. Os pacientes, que se sujeitaram sem reclamações ao corte de seus membros foram acusados de conluio. Na Inglaterra, em 1842. W.S. Ward amputou uma coxa com o paciente em transe mesmérico e reportou o caso à Real Sociedade de Medicina e Cirurgia. A evidência era de que o paciente não experimentara qualquer dor durante a intervenção. A Sociedade, não obstante, recusou-se a acreditar. Marshall Hall (o pioneiro no estudo da ação reflexa) alegou que o paciente deveria ser um impostor, e a nota sobre o documento, depois de lida, não constou das atas da Sociedade. Oito anos mais tarde, Marshall Hall informou à mesma Sociedade que o paciente confessara ser um impostor, mas que a fonte de tal informação era indireta e confidencial. O paciente, no entanto, em razão disso, assinou uma declaração afirmando que a operação fora indolor. (3 )

O conflito foi apaixonado e violento. Braid, médico clínico em Manchester, que retomou a matéria logo depois de Esdaile, foi ouvido com um pouco menos de hostilidade, porque começou atacando os seguidores de Mesmer e tentando invalidar o processo da sugestão pela explicação. Porém, até mesmo o trabalho de Braid (que finalmente estabeleceu a realidade da sugestão) foi negligenciado e ignorado por cerca de vinte anos após sua morte. Só quando Charcot assumiu a hipnose no Salpetrière, em Paris, quase um século depois da aclamação de Mesmer pelo público leigo, foi que o hipnotismo ganhou aceitação total entre os cientistas.

O ódio contra os descobridores de um fenômeno que ameaçava desfazer crenças acalentadas pela ciência foi tão amargo e inexorável como o da perseguição religiosa de dois séculos antes. Na verdade, teve o mesmo caráter.

Um paralelo contemporâneo ao menosprezo da ciência pelos fatos do hipnotismo parece ser sua atitude presente em relação à percepção extra-sensorial. Não me preocupo aqui com a questão de tal atitude ser certa ou errada, pois não estou seguro sobre ela. Quero penas mostrar o que entendo por crenças científicas, cuja sustentação e aplicação são essenciais para a conscientização da inquirição científica.

3 Esse relato do caso Ward está em History of Experimental Psychology, de E.G.Boring (1929), p.120. Baseei-me também nesse trabalho para outras partes do estudo do mesmerismo.

III

As pessoas que aceitam os achados da ciência normalmente não os encaram como um ato pessoa de fé. Elas acham que estão submetendo à evidência aquilo que, por sua natureza, compele seus assentimentos e aquilo que tem o poder de forçar uma dose semelhante de anuência de qualquer outro ser humano racional. Isso porque a ciência moderna é o resultado de uma rebelião contra a autoridade. Descartes liderou o caminho com seu programa de dúvida universal: de omnibus dubitandum. A Real Sociedade foi fundada com o lema: Nullius in verba, Não aceitamos qualquer autoridade. Bacon alegou que a ciência tinha que se fundamentar em métodos puramente empíricos, e Hypotheses non fingo, Nada de especulações!, fez eco Newton. A ciência vem sendo, por séculos, o açoite de todos os credos que personificam um ato de fé e supunha-se – e ainda hoje se supõe – erigida, em contraste com esses credos, sobre fundações constituídas de fatos puros, e só de fatos.

Todavia é bastante fácil ver que isso não é verdade, como David Hume assinalou pela primeira vez há cerca de 200 anos. A argumentação pode ser estabelecida, sem qualquer ambigüidade verbal, em termos matemáticos puros. Suponha-se que a prova sobre a qual uma proposição científica tenha que se basear consista em uma série de medidas feitas em determinadas ocasiões ou em coincidência com qualquer outro parâmetro mensurável. Em outras palavras, consideremos pares de duas variáveis medidas v1 e v2. Poderíamos decidir, a partir de uma série de pontos v1 plotados em relação a v2, que existe uma função v1 = ƒ(v2), e, se pudéssemos, qual seria ela? Claro que não poderíamos fazer nada disso. Qualquer conjunto de pares de valores de v1 e v2 é compatível com um número infinito de relações funcionais entre as quais não há nada a escolher do ponto de vista dos dados selecionados. Optar por uma das infinitas funções possíveis e conceder-lhe a distinção de uma proposição científica não tem, até aqui, qualquer significado. Os dados medidos são insuficientes para a construção de uma função definida v1 = ƒ(v2), exatamente da mesma maneira que dois elementos de um triângulo são insuficientes para defini-lo.

Tal conclusão não se altera, apenas fica obscurecida com a introdução do elemento de previsão científica. Para começar, a predição não é um atributo regular das proposições científicas. As leis de Kepler e a teoria darwiniana não predizem coisa alguma. De qualquer maneira, a predição bem-sucedida não modifica fundamentalmente o status da proposição científica; ela só adiciona algumas observações – as observações antecipadas – à nossa série de medidas e não pode alterar o fato de que qualquer série de medidas é incapaz de definir uma função entre as variáveis mensuradas. (4)

Como alguns leitores podem se mostrar relutantes em aceitar isso, devo ilustrar o fato um pouco mais. Suponha-se que um jogador observe a quantidade de pretos e vermelhos que aconteceram em cem giros consecutivos da roleta.Ele pode plotar os resultados num gráfico e derivar uma função à luz da qual poderia fazer uma previsão. Poderia, então, jogar e ganhar; jogar mais uma vez e também ganhar; jogar de novo e ganhar pela terceira vez. Isso provaria a sua generalização? Claro que não, provaria apenas que alguns jogadores são sortudos, ou seja, as previsões seriam meras coincidências.





Há alguns anos, apareceu na Nature (5) uma tabela de números provando, com grande precisão, que o tempo de gestação, medido em dias, de diversos animais diferentes, que iam dos coelhos às vacas, era um múltiplo do número π. Reproduzi aqui a tabela para mostrar quão surpreendente é a concordância. Contudo, uma relação exata dessa espécie não causa impressão alguma no cientista moderno, nem qualquer prova adicional o convenceria da existência de uma relação entre o período de gestação de animais e o número π.

Quem quer que tenha amigos entre os astrólogos pode ter por intermédio deles exemplos extraordinários de previsões confirmadas, difíceis de serem rivalizadas pela ciência. Mesmo assim, os cientistas rejeitam considerar até o mérito das previsões astrológicas.

Mesmo na ciência, eu poderia falar de previsões que foram verificadas de forma admirável, porém baseadas em premissas que mais tarde se revelaram errôneas. Assim foi o caso da descoberta do hidrogênio pesado. Não existe critério racional pelo qual a concretização acidental de uma previsão possa ser discriminada de uma confirmação autêntica.

Aqueles que estavam convencidos de que a ciência podia se basear exclusivamente em dados experimentais tentaram evitar o peso de tal análise crítica reduzindo as alegações da ciência em nível mais moderado. Eles ressaltaram que as proposições científicas não alegavam ser verdades, apenas possibilidades; que elas não prediziam coisa algum com certeza, mas só como probabilidade; que elas eram provisórias e não alegavam caráter final.

Tudo isso é irrelevante. Se alguém afirma que, dados dois ângulos, se pode determinar um triângulo, sua afirmação não faz sentido, quer ele queira fazer uma construção verdadeira, quer seja a construção de um triângulo meramente provável. A seleção de um só elemento entre um conjunto infinito deles, todos satisfazendo as condições estabelecidas pelo problema, permanece sendo injustificável, quaisquer que sejam as qualidades positivas que emprestemos à nossa seleção. Seu valor é inteiramente nulo. Na realidade, os cientistas fariam objeção tanto a regras serias para jogos de azar quanto a previsões astrológicas, ou a relações entre períodos de gestação de animais e o número π, independentemente de serem feitas com certeza, como meras probabilidades, ou se revestirem de caráter provisório. Elas não seriam, por causa disso, consideradas menos disparatadas.
Nem uma outra tentativa para aliviar a responsabilidade dos ombros dos cientistas revelou-se mais bem-sucedida. A ciência, diz-se, não alega descobrir a verdade, mas apenas fazer uma descrição ou resumo de dados observados. Então, por que faz objeção à astrologia ou à descrição dos períodos de gravidez como múltiplos do número π? Obviamente, porque não são descrições verdadeiras ou racionais; o que traz o problema exatamente de volta para onde estava. Pois não é mais fácil encontrar justificativa para selecionar dos dados observados uma das descrições como verdadeira ou racional do que escolher qualquer outra relação, sejam quais forem as alegações.

Uma outra tentativa de abrandar a dificuldade para justificar as alegações da ciência foi a sugestão de que as declarações científicas não reivindicam ser verdades, mas que são simples. Porém, os cientistas não rejeitam a astrologia, a mágica ou a cosmologia da Bíblia porque elas não são suficientemente simples. Não é nada disso. A menos que a palavra “simples” seja tortuosamente deturpada para significar “racional” e venha, finalmente, a coincidir com “verdadeiro”.

Para onde nos voltarmos, não poderemos evitar o fato de que a validade das declarações científicas não é obrigatoriamente inerente á evidência a que se refere. Aqueles que acreditam na ciência têm que admitir, portanto, que estão colocando na evidência de seus sentidos uma interpretação pela qual devem assumir certa dose de responsabilidade. Ao aceitarem a ciência como um todo e aos subscreverem qualquer declaração dela, eles estarão confiando, em certa medida, em convicções pessoais próprias.

4 Essa argumentação foi apresentada pela primeira vez no meu Science, Faith and Society (1946), p. 7
5 Nature, Vol.146, (1940), p.620.


IV

O positivista pode reconhecer que as interpretações científicas contemplam um elemento fiduciário, porém, mesmo assim, insistirá em que existe um núcleo de fatos puros ou sensações primárias, que qualquer teoria terá que aceita-las como tal.

Entretanto, é muito difícil descobrir quaisquer dessas sensações primárias sem antes fazermos alguma interpretação delas. (6) Uma criança diante de uma bandeja com diversos objetos percebe apenas aqueles com os quais tem alguma familiaridade. Os habitantes da Terra do Fogo, que Charles Darwin visitou desembarcando Beagle, ficaram excitados com a visão dos pequenos barcos que transportaram a comitiva para a praia, mas não notaram o próprio navio ancorado à frente deles. (7) Nossos globos oculares são repletos de pequenos corpos opacos flutuantes que normalmente não notamos, mas que nos enchem de apreensão quando qualquer problema com a vista desperta nossa atenção para tais corpos. Existe um ponto cego em nosso campo de visão que pode obliterar a cabeça de um homem à distância de dois metros, mas que parece ter permanecido despercebido pelos registros históricos de tempos relativamente recentes. Dizer que somos possuidores de sensações que não percebemos parece muito pouco aceitável. Porém, a partir do momento em que notamos uma coisa, digamos pela visão, nós a percebemos como alguma coisa. Normalmente a identificamos por estar a certa distância, por fazer parte de algo mais, ou por ter outras coisas como pano de fundo. Implícitos nessas percepções estão o tamanho do objeto e o fato de ele estar em repouso ou se movimentando. A cor percebida de um objeto depende em grande parte da interpretação que dele fazemos. Um smoking à luz do sol é visto como preto, e a neve no crepúsculo, como branca, mesmo que a neve branca envie menos luz para o olho do que o smoking negro. Fatos como esses deixam pouco espaço para as sensações como dados iniciais de um problema. Eles mostram que, mesmo nos estágios mais elementares da cognição, já estamos comprometidos com um ato de interpretação.

Sempre existe um certo grau de escolha na nossa forma de percepção, e, toda vez que vemos alguma coisa de determinada forma, não podemos vê-la, ao mesmo tempo, de outra. Uma mancha preta num fundo branco ou pode ser vista como uma mancha mesmo ou como um buraco, mas o olho tem que optar por uma das duas formas de vê-la. Podemos ver um trem em movimento parado e sentir que estamos nos movimentando, e vice-versa, porém temos que escolher entre as duas formas de percepção. Um ataque aos nossos sentidos pode muito bem atrair nossa atenção. Mas, se o fizer, também atrairá nossa percepção e nos comprometerá com alguma maneira de receber a impressão e não a conhecer de outro modo.

Tais observações têm significação geral. Quando se adota uma forma de ver as coisas, estão sendo destruídos, no mesmo momento, alguns modos alternativos de vê-las. Daí a razão de a controvérsia aberta ser deliberadamente usada como um método para a descoberta da verdade. Num tribunal, por exemplo, requer-se que os advogados de defesa e acusação assuma, cada um, seu lado da questão em julgamento. Supõe-se que, pelo fato de os dois advogados enveredarem por direções opostas, eles possam descobrir tudo o que venha a favorecer suas causas. Se, por outro lado, o juiz entrar em consultas amigáveis com os dois lados, na busca de um acordo entre as partes, isso seria considerado um grande malogro da justiça.

Porém, nem sempre se percebe que até no tratamento científico de sistemas inanimados são possíveis diferentes abordagens mutuamente excludentes. As leis da natureza, com freqüência, fazem predições definidas. Por exemplo, a lei de Boyle, pv = constante, é uma dessas predições sobre as mudanças de pressão que acompanham a expansão e a compressão de um gás. Se é verdade ou não que um determinado gás sob observação deve ser apreciado quanto ao fato de satisfazer ou negar tal predição é um requisito que ainda resta ser decidido; entretanto, mesmo assim, a predição teórica seria definida. Torne-se, por outro lado, um átomo radioativo que tende a se desintegrar e do qual sabemos o tempo de vida provável. Suponha-se que esse tempo seja de uma hora. É bem fácil imaginar um equipamento com o qual possamos observar a decomposição desse átomo singelo e – para evitar fatos colaterais irrelevantes – pode-se imaginar também que tal átomo é o único de sua espécie no mundo. O tempo provável de vida seria, sem dúvida, ótimo indicador do comportamento do átomo, mas nada tão definitivo como pv = constante. Ao aceitarmos que o período provável de vida é de uma hora, estaremos nos comprometendo com uma expectativa, porém, se ela não se concretizar – se o átomo se decompuser em cinco segundo ou nos deixar esperando por uma semana -, o máximo que poderemos dizer é que nos surpreendemos; isso porque nossa afirmativa era apenas a indicação de um evento e não excluía a possibilidade de ocorrência do inesperado.

As espécies de expectativas que acabei de descrever podem ser alimentadas em relação à mesma situação, contudo, elas são mutuamente excludentes. Podemos dizer que a chance de se conseguir um duplo seis com o arremesso de dados é de I:36, mas não poderemos dizer isso, nem mais nada sobre as possibilidades, se soubermos exatamente quais as condições mecânicas que prevalecerão por ocasião do arremesso. Com base em tais condições, poderemos prever o resultado do arremesso – todavia, o conceito de chance teria desaparecido e se tornaria inconcebível para um sistema conhecido em tais detalhes. Destarte, o conhecimento mais detalhado pode destruir completamente um padrão, o qual só pode ser valorizado de um ponto de vista que exclua esse conhecimento.

Algo bastante semelhante se aplica a uma máquina, cuja observação detalhada pode ser totalmente irrelevante e, portanto, enganadora. O que interessa para o entendimento de um objeto como uma máquina é, exclusivamente, o princípio de sua operação. O conhecimento de tal principio, como definido, digamos, por uma patente, deixa as particularidades físicas da máquina em grande parte indeterminadas. O princípio da alavanca, por exemplo, pode ser empregado em tão infinita variedade de formas, que, dificilmente, uma característica física poderia se aplicar a todas elas.Trata-se de uma categoria lógica que corre o risco de ser obscurecida pela descrição detalhada de um objeto ao qual ela se aplica.

Novamente, existem objetos inanimados que funcionam como sinais: por exemplo, as marcas no papel que formam a letra “a”. Tais marcas, tomadas como sinais, não têm que ser observadas, e sim lidas. A observação de um sinal como objeto destrói seu significado como sinal. Caso se repita a palavra “travel” vinte vezes em sucessão, ficaremos totalmente conscientes dos movimentos de nossa língua e dos sons envolvidos pela pronúncia de “travel”, mas acabar-se-á dissolvendo o significado dessa palavra.

Martin Buber e J.H.Oldham trouxeram à luz a diferença fundamental de se tratar uma pessoa como objeto ou como pessoa nessa última relação, encontramos a pessoa; na outra, não a vemos absolutamente. O amor é um modo de encontro. Podemos amar uma pessoa como uma criança, como homem ou mulher e, finalmente, como um ser em idade avançada; podemos continuar amando tal pessoa depois da morte dela. Qualquer tentativa de fixar nossa relação com uma pessoa pela observação de suas características ou de seu comportamento está fadada a comprometer nosso encontro com ela. Um homem ou uma mulher, encarados puramente por seus atributos físicos, podem ser objetos de desejo, mas jamais serão verdadeiramente amados. Suas pessoas teriam sido destruídas.

O mais importante par de abordagens mutuamente excludentes para a mesma situação é o formado pelas interpretações alternativas de questões humanas em termos de causas e razões. Pode-se tentar representar ações humanas totalmente em termos de suas causas naturais. Tal é, de fato, o programa do positivismo ao qual já me referi. Caso ele seja implementado, considerando as ações humanas, inclusive a expressão de suas convicções, como um conjunto total de respostas a um dado grupo de estímulos, então estaremos suprimindo quaisquer fundamentos com os quais tais ações ou convicções poderiam ser aceitas ou contestadas. Pode-se interpretar, por exemplo, este ensaio em termos das causas que determinaram minha ação de escrevê-lo, mas se pode também indagar quais as razões para o que eu digo. Todavia as duas abordagens – em termos de causas e razões – se excluem mutuamente.

6 “Uma sensação pura é uma abstração”, diz William James em The Principles of Psychology, Vol II, p.3. Esse ponto de vista tem sido desde então poderosamente desenvolvido pela psicologia da Gestalt. Meus exemplos que ilustram a percepção organizada são, em sua maioria, dos escritos dessa escola.
7 The Principles of Psychology, William James (18910, Vol. II, p. 110.


V

O positivismo fez com que encarássemos as crenças humanas como manifestações pessoais arbitrárias, das quais deveríamos nos livrar caos quiséssemos atingir uma imparcialidade científica autêntica; as crenças necessitam ser reabilitadas do descrédito em que foram lançadas para que sejam reconhecidas, daqui por diante, como partes de nossas convicções científicas.

As crenças científicas não são uma preocupação pessoal. Mesmo que fosse assumida por uma só pessoa, como pode ter sido a crença de Colombo numa rota ocidental alternativa para as Índias, quando a concebeu pela primeira vez, isso não faz dela uma preferência individual – como o amor de alguém pela esposa ou pelos filhos. As crenças dos cientistas referentes à natureza das coisas são sustentadas com uma alegação de validade universal e assim possuem caráter normativo. Eu descreveria, então, a ciência como uma crença normativa, de que partilho; justamente como a astrologia é uma crença normativa que rejeito – mas que é aceita pelos astrólogos.

Analisando agora a controvérsia de que todas as crenças são arbitrárias, tenho que me estender um pouco sobre as crenças em geral. Quem quer que abrace uma crença aceita um compromisso. Os compromissos não só são assumidos pelas pessoas que acreditam em alguma coisa, como também por quase todos os seres vivos, em particular pala totalidade dos animais engajados em ação intencional (que persiga um objetivo). Uma ameba flutuante emite pseudópodos para todas as direções, até que seu núcleo fica desprovido de protoplasma no centro. Quando um dos pseudópodos encontra um ponto firme, os outros são para lá atraídos, e toda a massa de protoplasma flutua para o novo ponto de ancoragem. Essa é a forma de locomoção da ameba. Temos aqui o protótipo de um fenômeno que é repetido num milhão de variantes em todo o reino animal. Existe coordenação entre os movimentos simultâneos dos membros dos animais e também entre os movimentos que se sucedem no tempo. Podemos caracterizar tais seqüências coordenadas pelo fato de qualquer parte da seqüência não ter significado se tomada individualmente, mas que faz sentido em conjunção com as outras partes. Cada uma delas só pode ser entendida como integrante de um estratagema para a conquista de um objetivo que, temos razão para acreditar, proporciona satisfação ao animal, como, por exemplo, a obtenção de alimento ou o afastamento do perigo. Quanto mais indiretos forem os métodos empregados para se atingir um objetivo, mais sagaz parecerá ser a coordenação e mais claramente reconheceremos neles um esforço sustentado por tal objetivo.

Dizer que um ação é intencional é admitir que ela pode malograr. Se o objetivo dos animais é a sobrevivência até que tenham se reproduzido, então, sem dúvida, a vasta maioria das ações intencionais malogra; posto que apenas uma fração pequena de cada geração de animais vive para procriar. De qualquer forma, nenhum anima engajado numa ação intencional pode estar certo de que seus esforços frutificarão. Nem pode também haver certeza de que um curso alternativo de ação tem maior chance de sucesso. Todas as ações intencionais, por conseguinte, expões seu agente a certos riscos. As formas intencionais de comportamento são uma fieira de compromissos irrevogáveis e incertos.

Podemos dizer que compromissos dessa ordem expressam uma crença; onde houver um esforço intencional, existirá uma crença no sucesso. Com toda a certeza, ninguém pode acreditar verdadeiramente em alguma coisa a menos que esteja disposto a se comprometer com a força de sua crença. Concluímos, dessa forma, que a assunção de uma crença é um compromisso de que são capazes os seres humanos e que envolve cerrada analogia com o compromisso pelo qual os animais, universal e quase inevitavelmente, se engajam quando embarcam num curso de comportamento intencional.

Voltemos agora às crenças científicas. Quando dizemos que a afirmação de um cientista é falsa ou verdadeira, normalmente não precisamos nos referir explicitamente às nossas crenças científicas fundamentais. Podemos voltar as costas para elas e toma-las como base inconsciente de nosso julgamento. Porém, quando alguma questão fundamental está em jogo (como o hipnotismo, a telepatia, etc.), nossas crenças se tornam visivelmente, partícipes ativas da controvérsia, e podemos achar mais conveniente dizer, por exemplo, “Não acredito que isso seja verdade.” Uma tal crença pode acabar sendo falsa ou verdadeira, conforme o caso, mas a afirmação da crença não cai em nenhuma das duas categorias; essa afirmação de uma crença só pode ser ou sincera ou insincera. Crenças sinceras são aquelas com as quais nos comprometemos, e os compromissos fiduciais são, portanto, por definição, sinceros. Nossos compromissos podem se revelar ousados. Mas é da natureza de uma crença não ser totalmente justificada no momento em que é assumida, já que é inerente a todos os compromissos a incerteza do resultado a ocasião em que com ele nos engajamos.

Portanto, o único motivo de crítica para a assunção sincera de uma crença ou para o engajamento em qualquer outro tipo de compromisso é o de não se levar suficientemente em conta sua possível ousadia. Contudo, temo que nos lembrar que qualquer adiamento do julgamento em prol de sua reconsideração é, em si, um compromisso. Continuar hesitando para se estar mais seguro quanto à decisão pode ser a mais desastrosa e, na verdade, a mais irresponsável das linhas de ação. Em conseqüência, quando uma crença é sincera e responsavelmente assumida – isto é, com percepção consciente de sua própria falibilidade - , há uma afirmação presente que não pode ser criticada por razão alguma. É uma forma de ser cuja justificativa não pode ser racionalmente questionada.

Tal situação está, é claro, sujeita a revisões, e uma crença do momento presente pode ser rejeitada ou modifica pela reflexão do momento seguinte, mas essa reflexão e seu resultado serão, mais uma vez, um compromisso definido, que ainda não se tornou objeto de reflexão ou de crítica. Os compromissos devem ter duração. Qualquer tentativa de acompanhá-los, simultaneamente, com reflexões é autocontraditória em termos lógicos, e a persistência dessa atitude resulta na desintegração de nossa pessoa. Se não pudermos nos desorientar em absoluto, mas no sentirmos compelidos a nos observar em tudo o que fizemos, tornamo-nos despersonalizado da maneira que Sartre descreu com tanta perspicácia. As pessoas que não podem se libertar do sentimento de que estão “representando” se tornam incapazes de sustentar convicções. O resultado não é um distanciamento de grau superior, mas um niilismo impotente.

O distanciamento, no rigoroso sentido da palavra, só pode ser atingido num estado de completa imbecilidade, bem abaixo do nível animal normal (8). Em todos os estados da mente acima desse, há compromissos inevitáveis, e compromissos que, normalmente, excluem outros enfoques. A abordagem científica descritiva como concebida pelos positivismo é inadequada até mesmo para o tratamento dos sistemas inanimados nos quais temos que avaliar chances, ou entender máquinas, ou ler sinais; e, quando aplicada a pessoas (humanas ou animais) e suas ações, ela anula ambas como pessoas e como seres racionais. Tal abordagem, longe de representar um estágio de absoluto distanciamento, é, na verdade, um comprometimento com um conjunto específico e extremamente irracional de pressuposições, com as quais ninguém se comprometeria conscientemente, a não ser que tais suposições fossem assumidas para proporcionar uma abordagem objetiva e completamente indiferente do mundo.

O distanciamento, no sentido ordinário e autêntico, significa o compromisso com uma abordagem particular que se julga apropriada para a ocasião e o desengajamento de outros pontos de vista que parecem inadmissíveis na ocasião. Sustentar um equilíbrio entre nossos enfoques alternativos possíveis é nosso compromisso definitivo, o mais fundamental de todos.

8 Penso aqui na demência dos cachorros descerebrados (Golz), nos ratos descorticados (Brain Mechanism and Intelligence, de Lashley, p.138) e no comportamento de puro reflexo dos organismos inferiores incompletos, como as Planaria descritas por Kepner (Animals Looking into the Future, [1925], p.176). Em tais casos, pode-se observar comportamento incoerente, sem qualquer propósito.

VI

As crenças que os homem encampam lhes são repassadas, na sua maior parte, pela educação recebida. Algumas são adquiridas por intermédio de treinamento profissional e de uma enorme variedade de influências educativas que se infiltram em nossas mentes via impressa, obras de ficção e outros inumeráveis contatos. Tais crenças foram sistemas de longo alcance e, conquanto cada um de nós seja afetado apenas por limitada parte deles, estamos comprometidos por implicação a todo o padrão por eles conformado.

Na sua maioria, a transmissão de crenças na sociedade não se dá por meio de preceitos, e sim de exemplos. Considere-se a ciência: não existe livro didático que chegue mesmo a tentar o ensino de como fazer descobertas, ou mesmo de sugerir quais evidências devem ser aceitas na ciência para dar fundamento a uma alegação de descoberta. Toda a prática da pesquisa e da verificação é transmitida pelo exemplo, e seus padrões são sustentados por um contínuo relacionamento crítico dentro da comunidade científica. Quem quer que tenha experimentado o deplorável nível de desconfiança n os resultados que emergem das regiões onde os padrões científicos não estão firmemente estabelecidos pela tradição, ou que vivenciou a dificuldade em fazer bom trabalho científico dentro de tal milieu, entende muito bem a característica comunitária das premissas que dão sustentação à moderna obra científica. (9)

9 Este assunto é detalhado mais adiante, p.101.

Os cientistas, é claro, não são unânimes em todas as questões. Podem mesmo ocorrer choques ocasionais sobre a natureza geral das coisas e sobre os métodos fundamentais da ciência (como no caso do hipnotismo, da telepatia, etc.) Ainda assim, o consenso sobre as crenças científicas não vinha sendo seriamente ameaçado nos últimos 300 anos, até que a Rússia soviética tentou se separar da comunidade internacional da ciência e estabelecer uma nova comunidade científica com base em crenças acentuadamente diferentes. Até então, sempre existira, entre os cientistas de todas as partes do mundo e entre as gerações que se sucediam, consenso suficiente sobres as crenças fundamentais para assegurar a conciliação de toda as diferenças.

A comunidade científica se mantém unida, e todas as suas questões são pacificamente administradas mediantes a aceitação conjunta das mesmas crenças científicas fundamentais. Pode-se dizer, portanto, que tais crenças científicas fundamentais. Pode-se dizer, portanto, que tais crenças dão forma à constituição da comunidade científica e incorporam sua vontade geral soberana e definitiva. A liberdade da ciência consiste no direito de buscar a exploração dessas crenças e de defender, sob sua orientação, os padrões da comunidade científica. Para tanto, é necessário um certo grau de autogoverno, com o qual os cientistas mantêm uma estrutura de instituições, assegurando posições independentes para aqueles de mais experiência; os candidatos a tais posições são selecionados sob a direção da opinião científica. Assim se estabelece a autonomia da ciência no Ocidente, que flui logicamente da natureza do objetivo básico e das crenças fundamentais, aos quais se dedica aqui a comunidade de cientistas.

A concepção marxista da ciência é diferente daquela do Ocidente e sua aplicação na Rússia já ensejou por lá sérias mudanças na posição da ciência e penetrou como uma cunha, em várias regiões, dividindo as opiniões científicas entre o Oriente e o Ocidente. A ação de maior alcance nesse sentido foi o repúdio abrangente e oficial das leis de Mendel e de toda a concepção da biologia relacionada com essas leis por parte da Academia Soviética, em 26 de agosto de 1948.

Foram muitos os protestos indignados no Reino Unido contra a decisão da Academia Soviética e mais ainda contra a pressão exercida pelo governo soviético, à qual a academia cedeu ao tomar tal decisão. Eu subscrevo tais protestos, mas gostaria que seus fundamentos teóricos adequados fossem mais claramente entendidos. Caso se proteste em nome apenas da liberdade geral, fica-se em situação embaraçosa porque, até aqui, tem-se que admitir que só os antimendelianos e toda a escola de Michurin e Lysenko tiveram suas publicações excluídas das principais revistas científicas da União Soviética e cujos ensinamentos deixaram de constar dos currículos universitários russos, ao contrário do que ocorre no Ocidente. Os marxistas têm razão quando ressaltam que sempre existiram pontos de vista aceitos sobre questões gerais que foram impostos pela opinião científica por meio de revistas especializadas, livros didáticos e currículos acadêmicos; de modo geral, a dissidência em relação a tais pontos de vista colocou em risco as chances futuras dos candidatos a postos científicos de relevo. Eles também têm razão quando apontam que pontos de vista assim impostos por vezes se revelaram falsos, justificando as posições dos dissidentes.

Temos que reconhecer que o corpo existente da ciência – ou, o que dá no mesmo, suas crenças fundamentais – é uma ortodoxia no Ocidente. Milhões são gastos anualmente no cultivo e na disseminação da ciência pelas autoridades públicas, que não dariam um centavo para o desenvolvimento da astrologia ou da bruxaria. Em outras palavras, nossa civilização está profundamente comprometida com certas crenças sobre a natureza das coisas; crenças diferentes, por exemplo, daquelas em que acreditavam as antigas civilizações egípcia ou asteca. É para o cultivo dessas crenças particulares – e só delas – que se concede uma certa medida de independência e de apoio oficial a um certo grupo de pessoas no Ocidente.

Eis aí o que entendemos por liberdade acadêmica. Troque-se a ciência, como por nós conhecida, por qualquer outro estudo em que não acreditemos e deixaremos de protestar contra a interferência política. Suponha-se, por exemplo, que a Lysenko e seus seguidores fosse concedido o prazo claro de 30 anos para que transformassem a biologia, a química e a física, sob a imagem do materialismo dialético, em todas as universidade da URSS, e que, subseqüentemente, por um passe de mágica o marxismo fosse abandonado pelo governo da União Soviética. Evidentemente, não apoiaríamos as liberdades acadêmicas para os então ocupantes de posições científicas contra um anti-Lysenko que agisse como Lysenko age hoje, mas, dessa vez, para o restabelecimento de nossa concepção de ciência. Pode-se até assegurar um certo grau de liberdade para qualquer tolice num país livre, porém não é isso que entendemos por liberdade acadêmica.

Aqueles que se engajam com os marxistas na discussão sobre a liberdade na ciência devem estar preparados para enfrentar essa situação. Os adeptos dessa ideologia estão bem perto da verdade quando dizem que, ao demandarmos liberdade, estamos simplesmente procurando estabelecer a nossa própria ortodoxia. A única objeção válida para tal argumentação é que nossas crenças fundamentais não são apenas uma ortodoxia; elas são crenças autênticas que estamos dispostos a defender. Acontece também que essa visão verdadeira abre maior espaço para a liberdade do que as outras, as falsas visões; isso, de fato, é assim, porém, de qualquer forma, nosso compromisso com aquilo em que acreditamos tem prioridade.

Falando de maneira mais geral, a liberdade da ciência não pode ser hoje defendida com base na concepção positivista da ciência, a qual envolve um programa positivista para a ordenação da sociedade cuja implementação completa resultaria na destruição da sociedade livre e no estabelecimento do totalitarismo.

Isso por que uma interpretação causal das questões humanas desintegra todos os motivos racionais com os quais os homens sustentam convicções e agem segundo elas. Tal interpretação deixa a imagem de questões humanas construídas em torno de apetites apenas refreados pelo medo. Tudo o que tem que ser explicado para que se entenda a história e, com ela, a política, as leis, a ciência, a música, etc., é o porquê de o apetite de certo grupo conseguir vantagem, em determinados momentos, sobre seus rivais. Nesse ponto, tem-se várias opções; Marx e Engels decidiram responde à questão em termos de luta de classes. Afirmaram eles que a classe que, ao se apoderar dos meios de produção, puder fazer o melhor uso deles para o crescimento da riqueza irá prevalecer. Para eles, a vitória da classe emergente é inevitável, embora ela só possa ser alcançado pela violência, já que a classe que governa não pode concordar com sua própria aniquilação. Essa teoria foi apresentada como uma proposição científica: como a descoberta das “leis do movimento” que regem a sociedade. Na realidade, alguma concepção dessa espécie vem, inevitavelmente, de uma aplicação consistente do programa positivista às questões do homem.

Segundo tal teoria positivista da sociedade, nenhum julgamento humano – seja ele na política, nas leis, na arte ou em qualquer outro campo do pensamento humano, inclusive na própria ciência – pode ser considerado válido, a menos que sirva aos interesses de um certo poder. Na versão marxista, esse poder é o da classe emergente, como corporificado no governo soviético. Tal é a teoria da ciência com que nos deparamos hoje na Rússia. É lá que o movimento positivista, que se propôs a estabelecer o reino da ciência sobre todo o pensamento humano, está culminando com a derrubada da própria ciência.

A sociedade livre - da qual uma comunidade científica livre naturalmente faz parte – só pode ser defendida pelo reconhecimento de crenças características encampadas em comum por tal sociedade e por ela preconizada como autênticas. A crença principal – diria mesmo, fundamental – que embasa uma sociedade livre é a de que o homem é receptivo à razão e suscetível aos reclamos de sua consciência. Entendemos aqui por razão coisas como a prática ordinária da objetividade no estabelecimento de fatos e do juízo de valor nos casos individuais. Os cidadãos de uma sociedade livre acreditam que, por intermédio de tais métodos, são capazes de resolver conjuntamente – para a satisfação suficiente de todos – qualquer dissensão atual que possa existir entre eles ou que venha a surgir no futuro. Eles visualizam um campo de atuação inexaurível para o melhor ajuste das instituições sociais e estão dispostos a conseguir isso de forma pacífica, pelo acordo.

Assim como, numa escala menor, a comunidade científica organiza, disciplina e defende o cultivo de certas crenças sustentadas por seus membros, também a sociedade livre como um todo é mantida para a prática de determinadas crenças mais amplas, porém, ainda assim, bastante características. O ideal para uma sociedade livre é ser, em primeiro lugar, uma boa sociedade - um corpo de homens que respeitem a verdade, desejem a justiça e amem o próximo.(10) É só porque tais aspirações coincidem com os reclamos de nossa própria consciência que as instituições que se preocupam com sua concretização são por nós reconhecidas como salvaguardas de nossa liberdade. É enganador descrever uma sociedade assim constituída, que é um instrumento de nossas consciências, como estabelecida para o bem de nosso eus individuais, por que ela protege nossa consciência contra nossa própria ganância, ambições, etc., da mesma forma que o faz contra a corrupção por parte de outros. Moralmente, os homens vivem pelo que sacrificam para suas consciências; por conseguinte, os cidadãos de uma sociedade livre, dos quais grande parte da vida moral é organizada mediante contatos cívicos, dependem fortemente da sociedade para sua existência moral. Suas responsabilidades sociais proporcionaram-lhe uma vida moral com a qual não privam aqueles que não desfrutam da liberdade. Daí ser a sociedade livre um fim em si mesma, que pode, com correção, demandar os serviços de seus integrantes para a manutenção e a defesa de suas instituições.

A formulação e a aceitação fiduciárias da ciência encaixam-se em nossa concepção fiduciária de sociedade livre. As crenças, científicas são partes das crenças cultivadas por uma tal sociedade e aceitas por seus membros. Essa é sua lídima defesa contra o marxismo. Todavia, devemos ter em mente que tal defesa aceita uma posição para o conhecimento na sociedade que, em muitos aspectos, lembra aquela abraçada pelo marxismo. Isso significa que a sociedade livre ampara uma ortodoxia que exclui certas suposições amplamente divulgadas na atualidade. Qualquer representação do homem e das questões humanas que, se sustentadas com consistência, destruiriam as crenças constitutivas de uma sociedade livre tem que ser negada por tal ortodoxia. Um behaviorismo que contesta a própria existência da esfera moral em função da qual numa sociedade livre é organizada, ou uma psicologia que desacredita como mera racionalização secundária os propósitos considerados molas mestras dessa sociedade livre, será rejeitado por tal ortodoxia.

A sociedade livre deixaria de existir se seus integrantes viessem a acreditar que algum conflito importante tivesse que ser resolvido pela força bruta dentro dessa sociedade. Tal admissão seria, portanto, subversiva e constituiria um ato de deslealdade para com a sociedade livre. Nem os membros dessa sociedade devem jamais admitir que a experiência possa refutar que as forças morais operam na história, da mesma forma que um cientista não admitiria que a experiência possa negar a concepção científica da natureza das coisas. Ao contrário, eles devem persistir pesquisando a história para a manifestação de um senso de justiça, e tentar descobrir em cada reconciliação e pacificação os frutos da confiança humana em resposta à confiança.

A ciência ou o academicismo nunca podem ser mais do que uma afirmação das coisas em que acreditamos. Tais crenças serão por sua própria natureza, de caráter normativo, pleiteando validade universal; elas devem ser também crenças responsáveis, sustentadas com a devida consideração pela evidência e pala falibilidade de todas as crenças; porém, afinal, elas são compromissos marcantes que levam a chancela de nosso julgamento pessoal. Em resposta a escrúpulos críticos que ainda possam advir, temos que, em determinada ocasião afirmar: “É porque eu acredito que seja assim.”

Estamos vivenciando um período que requer grandes reajustamentos. Um deles é aprender mais uma vez a sustentar crenças, nossas próprias crenças. A tarefa é formidável, pois por séculos fomos ensinados a crer apenas no resíduo daquilo que não possa ser assaltado por dúvidas. Não mais existe tal resíduo hoje em dia, daí a necessidade de readquirirmos, uma vez mais e sistematicamente, a capacidade de acreditar com os olhos abertos.


10 Nota adicionada em dezembro de 1949: Churchill tem dito freqüentemente que a afeição entre os ingleses é a garantia de sua segurança. Um exemplo recente foi a observação que fez no Parlamento a respeito dos votos de congratulações pelo transcurso do aniversário do Sr. Attlee (12/01/1949). Eles, disse Churchill, faziam-lhe lembrar “quão mais fortes são aqueles sentimentos que nos unem do que aquelas questões que , conquanto bastante importantes, são muitas vezes ocasiões de debate nesta Casa e fora dela”. Compare-se com a precária manutenção das instituições livres na Alemanha, que deve à falta de sentimentos amistosos entre os oponentes políticos, como manifestada também muito recentemente – pelo líder da Oposição, ao acusar o Chanceler alemão de servir aos Aliados.


(Michael Polanyi - Capítulo II – Convicções Científicas – do livro “A Lógica da Liberdade” Pág 33 – 66. Tradução de Joubert de Oliveira Brízida. Liberty Classics. Editora Topbooks. )

1 comment:

Anonymous said...

bom comeco

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