Wednesday, October 01, 2008

Ídolos das Multidões
Thomas Sowell

"Um grupo humano se transforma numa multidão quando responde a uma sugestão em vez de a um raciocínio, a uma imagem em vez de a uma idéia, a uma afirmação em vez de a uma prova, à repetição de uma frase em vez de a argumentos, ao prestígio em vez de à competência."

Jean-François Revel não estava se referindo aos Estados Unidos quando escreveu essas palavras, nem à sua França, mas aos seres humanos em geral. Ele não estava com certeza se referindo a Barack Obama, de quem ele nunca deve ter ouvido falar, pois Revel morreu ano passado.

Para encontrar algo comparável às reações de euforia da multidão em relação à Obama, teríamos que retroceder às antigas imagens das multidões alemãs dos anos 1930, com sua bajulação ao führer, Adolf Hitler. Em retrospecto, podemos olhar para aquelas pessoas com compaixão, sabendo quantos delas foram levadas à morte pelo homem que idolatravam.

A exaltação do momento pode custar um alto preço no futuro. Em nenhuma outra situação isso é mais verdadeiro do que quando se vai escolher o líder de uma nação, que significa entregar a esse líder o destino de milhões hoje e de gerações ainda por nascer.

Um líder não tem de ser mau para levar um país a uma catástrofe. Inexperiência e incompetência podem criar resultados muito similares, talvez ainda mais rapidamente numa era nuclear, quando "um pequeno país" - como o senador Obama chamou o Irã - pode provocar uma catástrofe em qualquer lugar do mundo, se esse país for governado por fanáticos suicidas e se ele fornecer armas nucleares a terroristas que são também fanáticos suicidas.

Barack Obama é verdadeiramente um fenômeno de nosso tempo - um candidato presidencial que não consegue citar uma única realização em sua carreira, além de alavancá-la com retórica.

Ele tem uma resposta retórica para tudo. Quando falamos da ameaça do Irã, estamos nos engajando na "política do medo" segundo Obama, algo que nos distrai das "verdadeiras questões", tais como aumentar impostos e fazer benesses com o dinheiro dos outros.

Quem já estudou os anos que precederam a II Guerra Mundial fica impressionado com o número de pessoas e países que não conseguiram enxergar os preparativos de Adolf Hitler.

Mesmo Hitler telegrafando seus golpes, poucas pessoas pareciam perceber a mensagem. Livros sobre o período tinham títulos como "A tempestade se avoluma" e "Por que a Inglaterra adormeceu?".

Será que as futuras gerações ponderarão sobre por que adormecemos? Por que não conseguimos perceber a tempestade se avolumando no Irã, onde um dos maiores produtores de petróleo do mundo está construindo plantas nucleares - ostensivamente para gerar eletricidade, mas cujo óbvio propósito é produzir bombas atômicas.

Esse é um país cujo presidente tem ameaçado tirar do mapa um país vizinho. Alguém tem de desenhar?

Quando os terroristas colocarem as mãos nas armas nucleares, não haverá meios de deter os homens-bomba. Nós e nossos filhos estaremos permanentemente à mercê dos impiedosos.

E do que estamos falando? De políticas fiscais e aumento de gastos governamentais, da culpa das companhias petrolíferas e do salvamento das pessoas que jogam com arriscados empréstimos habitacionais e perdem.

Estamos falando sério? Somos incapazes de percepção adulta das coisas e de assumirmos a responsabilidade adulta que nos cabe?

Barack Obama, claro, tem sua resposta usual: conversar. A retórica parece ser sua resposta para tudo. Obama clama por uma diplomacia "agressiva" e por "duras" negociações com o Irã.

Esses adjetivos coloridos podem impressionar eleitores ingênuos, mas eles têm pouca chance de impressionar fanáticos que estão dispostos a se destruírem se, no processo, eles conseguirem nos destruir.

O que exatamente o senador Obama irá dizer ao Irã que ainda não foi dito? Que não queremos que eles desenvolvam armas nucleares? Isso já foi dito, de todas as formas possíveis. Se conversa funcionasse, já teria funcionado.

Ir às Nações Unidas? O que eles farão, exceto publicar alertas - e quando eles forem ignorados, publicar outros mais?

Mas o que tem Obama além de conversa - e multidões de adoradores?

Publicado por Townhall.com
Tradução de Antônio Emílio Angueth de Araújo.

Monday, September 29, 2008

Cá entre nós
Percival Puggina

Em certo lugar da Suíça, 100 metros abaixo do chão, um grupo de cientistas começou a operar a maior máquina já criada pelo ser humano - o LHC (Large Hadron Collider, ou, em português, Grande Colisor de Hádrons) - que pretende encontrar explicações para a origem e o funcionamento do universo.
Não subscrevo nem renego a teoria do Big Bang porque desconheço seus fundamentos, coisas como o "bóson de Higgs" ou o "modelo padrão das partículas elementares". Meu interesse sobre o tema é de outra natureza. Diz respeito a um universo autocriado ou criado por Deus. A sofisticadíssima investigação sobre o que ocorreu no primeiro trilionésimo de segundo da existência do universo e sobre sua evolução ao longo dos recentes 14 bilhões de anos avança sobre erros e correções de erros. No entanto, convenhamos: conceber toda a não-criada massa do universo concentrada num único não-criado ponto, do tamanho de uma moeda, explodindo em um não-criado espaço-tempo, e
dando origem a tudo, por conta própria, implica um ato de fé. Temos, então, a fé em Deus (fé em um ente criador) e a fé em não-deus (fé em uma criação produzida por um não-ser). Ambas são de natureza e de conseqüências distintas e estão à disposição do leitor.
Pessoalmente, fico com a primeira porque me resolve, e resolve bem, tanto a questão do pontapé inicial quanto inúmeros outros problemas existenciais relevantes, ao passo que a segunda hipótese não me ajuda em coisa alguma. Por outro lado, enquanto a idéia do não-deus serve ao relativismo moral e à permissividade, a idéia de Deus se encaixa perfeitamente com a de que existe uma lei natural, uma ordem moral, a incidir sobre as ações humanas. É ela que nos faz, por exemplo, reprovar a covardia, a traição, a mentira e as várias formas de desonestidade, e a valorizar coisas como o amor, a solidariedade, a justiça, a paz, a ordem e a liberdade. É essa ordem moral que leva a
condenar o roubo e a cobiça às coisas alheias, o assassinato, a inveja, a luxúria e o adultério, a avareza e a preguiça. É dessa lei natural que decorrem, também, a repulsa a toda agressão à dignidade da pessoa humana e a sua vida, da tortura ao aborto.
Por que escrevo sobre coisas assim, quase óbvias? Porque estão se tornando cada vez mais insistentes as investidas no sentido de suprimir do nosso direito certos preceitos alinhados com essa lei natural. Ter convicções fundadas na sua existência, ou coincidentes
com orientações teístas ou religiosas, é tido como intromissão indevida em matérias perante as quais só se aceitam palpites com geração espontânea num big banguezinho ocorrido na cachola de quem os emite. É como se uma suposta inexistência de convicção e uma falta de fundamento das opiniões compusessem a exclusiva senha para ingresso no
privilegiado espaço das deliberações de interesse geral.
Insistem, para além da mera estultice e da simples teimosia, que apenas suas opiniões, em virtude de serem "neutras" e "não contaminadas" por qualquer ordem moral, ou escala de valores pré-existentes a eles próprios, merecem contar com a atenção de todos, configurar o Direito e orientar a Justiça. Cá entre nós: alegação tão descabelada, ou tamanho desvirtuamento ético, só se compreendem como expressão de profunda desonestidade intelectual.
Explicando o inexplicável
Ipojuca Pontes


O ato de censurar é um atentado contra a liberdade de expressão. Segundo Flaubert, o mais exigente de todos os escritores, a censura impõe-se como um crime de lesa-alma, algo pior que o homicídio. Mas o governo Lula não pensa em outra coisa. Nele, a proposta permanente e subversiva, tramada nos bastidores do poder sob qualquer pretexto ou razão, é a de o governo, em vez de ser fiscalizado, fiscalizar a imprensa.
O cuidado é excessivo. De fato, o governo, por meios diversos, já domina cerca de 80% do noticiário, obtendo, no caso do jornalismo opinativo, a submissão de uns 90% (ou mais) dos chamados "formadores de opinião". Mas para o governo petista a "quase totalidade" é pouco - ele quer o controle total da informação.
Agora mesmo, diante do escândalo que aponta a ABIN (Agência Brasileira de Inteligência, órgão subordinado ao Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República) como responsável pelo grampeamento de aparelho telefônico de Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro da Defesa, Nelson Jobim (em depoimento prestado na CPI do Grampo, no Congresso) sugeriu nova legislação para punir os responsáveis pelo vazamento de informações obtidas em escutas telefônicas - entre eles, os jornalistas que as tornem públicas.
Ao provocar os parlamentares, o Ministro da Defesa foi explícito: "Os senhores terão de prestar atenção não só ao interceptador ilícito, mas também no vazador de informações. Se os senhores não fecharem as duas pontas, vai continuar a acontecer o que está acontecendo".
O tresvariado Jobim não faz por menos: com a adesão do próprio Lula, agora dotado de poderes extraterrestres, pretende liquidar o sigilo da fonte, instrumento básico não só para a consecução do direito de informar à opinião pública, mas da própria sobrevivência da democracia. Na ordem prática das coisas, extinta na atividade jornalística a inviolabilidade do sigilo da fonte prevista na Constituição, só haverá punição para aqueles que divulguem, por imperativo do ofício, os crimes e as falcatruas cometidos (em abundância) pelos que governam o país.
Mas a coisa não fica por aí. Como resposta ao julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) de uma ação em que a atual Lei de Imprensa tem sua constitucionalidade contestada, por excessiva, o governo, por intermédio do seu Ministério da Justiça, enviou ao Congresso projeto de lei para punir jornalistas e órgãos da imprensa que tornem público o conteúdo de escutas telefônicas. Ou seja: a máquina totalitária do governo, reincidindo nas propostas anteriores levadas a efeito pelo Conselho Federal de Jornalismo e pela Ancinav, em vez da enaltecida transparência, quer estabelecer o silêncio pelo ato nefando da intimidação e censura.
Desde que se instalou em Brasília, em 2003, o governo Lula tem sido um colossal repositório de escândalos, sempre envolvido na armação de falsos dossiês, escutas telefônicas, dezenas de denúncias de fraudes, roubos, desfalques, argüição de falsidade ideológica, desvios de verbas oficiais, peculato - na generalidade dos casos sem nenhuma punição aparente. Os intermináveis processos de investigação que arrolam os acusados caminham, em geral, a passo de tartaruga, sendo que um número considerável de denunciados, em vez de castigo, ganha elogios, tapinhas nas costas, homenagens e, segundo o "expert" Anthony Garotinho, generosas "boquinhas ricas" no entorno dos fartos negócios oficiais.
Diante de um quadro assim, tão vergonhoso quanto patético, o que resta à opinião pública nacional mais consciente? Bem, invocando o Dr. Sacher Masoch, respondo: o sofrido, porém necessário direito de saber o que está se passando às suas barbas, se possível pela informação, ainda que incompleta, dos jornais. Claro, o saber-se dos delitos das autoridades governamentais não é uma solução, mas, quando menos, consola. E, por vezes, leva à inconformidade e, daí, à insubordinação.
Pois muito bem: é justamente o restrito consolo de conhecer a triste realidade dos fatos que a máquina do governo quer ver por terra, a partir da ação de Tarso Genro e as palavras de Nelson Jobim. Teria a máquina do governo, de posse de quase todos os instrumentos de repressão, inclusive os fiscais, algum medo (primitivo) da insubordinação do homem comum?
No mesmo instante em que o Ministério da Justiça enviava ao Congresso o seu projeto de lei contra a liberdade de imprensa, o relatório anual da Organização Transparência Internacional dava conta de que o Brasil continua sendo um dos países mais corruptos do planeta, ocupando posição elevada no ranking mundial na decomposição dos negócios públicos. Na variação entre o número zero (muito corrupto) e dez (livre de corrupção), que escalona o grau de corrupção global, o Brasil aparece com 3, 5 pontos, numa lista em que a Somália está catalogada na classificação inversa como dos mais corruptos, com 1 ponto.
Serão necessários mais argumentos para esclarecer a razão pela qual se pretende quebrar o sigilo da fonte e punir jornalistas e órgãos de imprensa que veiculem denúncias captadas nas escutas telefônicas?

PS - Os comunistas, que viviam condenando o PROER criado pelo social-democrata Fernando Henrique Cardoso, o "bom de bico", agora aplaudem, pela mesma razão, o "pacote de Bush" para socorrer os bancos americanos. Os comunistas são capazes de tudo, inclusive de justificar a expropriação do dinheiro dos contribuintes pelos banqueiros enriquecidos a partir da ultra-regulação e a vontade dos burocratas do FED - caso das seguradoras Fannie Mae e Freddie Mac, protegidas pelo paternalismo do Estado ianque. Mas qual é a lógica que explica o cidadão contribuinte pagar pela oferta de crédito fácil dos banqueiros em conluio com burocratas sabichões e compradores irresponsáveis?


Newsletter do MSM 29 de setembro de 2008

Saturday, May 31, 2008

Marcel Proust: Em busca do tempo perdido.

Hoje em dia, “como ler um romance” trauz-se, para mim, em como ler Proust, esplendor do romance clássico. O que fazer diante da extrema inventividade de Em busca do Tempo Perdido?
O vasto romance de Proust é narrado pelo quase inominado Marcel, um retrato do romancista (principalmente) quando jovem, relatando emaranhadas recordações da sociedade francesa, desde a última década do século XIX até 1922 (ano da morte de Proust). Os grandes temas do romance, listados em ordem alfabética, incluem amizade, beleza, bordéis, o Caso Dreyfus (e a imersão no anti-semitismo), ciúme (acima de tudo!), costumes, esteticismo, indumentária, inversões (homossexualismo masculino e feminino), literatura e a gradual evolução do narrador-romancista, mar, memória (tão prevalecente quanto o ciúme), mentira, os mortos (anexos aos vivos), sadomasoquismo, sono e tempo (tão onipresente quanto ciúme e memória).
Em busca do Tempo Perdido relata três histórias de amor (erotismo talvez seja o termo mais adequado). Carlos Swann, “colunável” de origem judaica, torna-se eroticamente obcecado por Odette de Crecy, com quem, finalmente se casa, após sofrer os tormentos do amor e do ciúme. A filha do casal, Gilberta, antes de se casar com Saint-Loup, que fora apaixonado por uma atriz chamada Raquel, é a primeira paixão do narrador Marcel, melhor amigo de Saint-Loup. Gilberta Swann é apenas uma precursora da grande paixão do narrador, Albertina Simonet, com quem Marcel tem um longo e complicado caso de amor, que culmina na fuga da mulher, e subseqüente morte em um acidente eqüestre.
Por mais maravilhosos que sejam os relatos de Proust acerca do sofrimento causado pelo ciúme de Swann, com relação a Odette, e pelo ciúme de Saint-Loup, com relação a Raquel, a apoteose do que poderíamos chamar “ciúme sublime” é alcançada na retrospectiva busca do tempo perdido, empreendida por Marcel, no que concerne aos relacionamentos homossexuais de Albertina, em que esta “trai” o amante possessivo. É preciso recorrer à Bíblia, a Shakespeare e a Dante para encontrar exemplos à altura da energia, da intensidade e do sofrimento do narrador, em busca do Norman Mailer chamaria “o tempo da vez de Albertina”. A tragicomédia shakespeariana, como em Medida por Medida e Tróilo e Créssida, é o que mais se aproxima da extraordinária ironia e do fascinante azedume característicos da grande busca de Marcel.
Atualmente, correm rumores de que o inominado narrador (nas 3.300 páginas do romance, apenas duas vezes chamado, ironicamente, de Marcel) é um subterfúgio de Proust, sendo o referido narrador heterossexual e cristão. São rumores estúpidos; os gays e as lésbicas que habitam as páginas do romance, assim como os judeus e os defensores de Dreyfus, ganham em simpatia, como resultado do aparente desinteresse do narrador (o próprio Proust era homossexual, partidário de Dreyfus e filho de querida mãe judia). Falando pelo magnífico autor, o narrador tem o privilégio de apresentar a mais extensa, vital e variada constelação de personagens a ser encontrada fora da obra shakespeariana. Saber ler romance, e Proust, especificamente, antes de mais nada, é saber ler e apreciar personagens literários. Em ordem alfabética, as personalidades indispensáveis a Proust são Albertina, Charlus, Françoise, Oriane Guermantes, a Mamma do narrador, Odette, Saint-Loup, Swann Verdurin (Madame). Se acrescentarmos uma décima personalidade, o próprio narrador, teremos um elenco mais expressivo, interiorizado e titanicamente cômico do que o de qualquer outro romance. O cosmo de Proust é tão irônico quanto o de Jane Austen; contudo, a ironia proustiana é menos defensiva e, talvez, menos um alicerce da invenção artística. Podemos dizer que, em Proust, ironia não é dizer algo cujo verdadeiro significado difere do conteúdo óbvio das palavras, mas, antes, é fazer os prenúncios que são amplos demais para caber em qualquer contexto social específico. Tais prenúncios tocam os pontos mais remotos da nossa consciência, e bucam os nosso princípios de como agir corretamente. Parece estanho considerar mística, ou quietista, essa ironia, mas, com efeito, trata-se de um correspondente secular da mais profunda espiritualidade. Não quero aqui confundir Proust e Krishna, no Bhagavad Gita, mas a memória proustiana, em ultima análise, parece um correto curso de ação, que cura o narrador, bem como o leitor, de um mal que a mencionada obra hindu denuncia como “inércia sombria”. Lemos romances (os grandes romances) como um tratamento contra a inércia sombria, enfermidade que nos leva à morte. O nosso desespero requer consolo, e a terapria de uma narrativa profunda. O personagem, no romance de Proust, assim como na obra de Shakespeare, realiza a cura que lhe é implicitamente prescrita pela cultura literária. Vivemos um momento de terrível ironia, quando uma cultura que fracassa em todos os seus aspectos conceituais – na filosofia, na política, na religião, na psicanálise, na ciência – vê-se compelida a se tornar literária, ao estilo da antiga Alexandria. Proust, assim como Shakespeare, médico mais perito do que Freud, oferece-nos personagens tão humanos quantos os de Chaucer e Shakespeare. Todos os personagens de Proust são, essencialmente, gênios cômicos, como tal, dão-nos a opção de acreditar que a verdade é tão engraçada quanto cruel.
Nietzsche, em uma de suas formulações mais hamletianas, adverte que só encontramos palavras para expressar o que já está morto em nossos corações, de maneira que o ato da fala sempre traz em si um ato desprezível. Proust, ao contrário de Shakespeare, é imune a esse desprezo, e seus grandes personagens expressam a generosidade do autor. A inércia em nossos corações, o nosso egoísmo, é questão séria, manifestada mais através do ciúme do que de qualquer outro sentimento humano, tanto em Proust quanto em Shakespeare. Atrevo-me a dizer que, hoje em dia, ler romances traz alivio à inveja, cuja expressão mais virulenta é o ciúme de natureza sexual. Uma vez que os dois autores ocidentais que melhor dramatizam o ciúme são Shakespeare e Proust, a questão de como ler o romance pode ser reduzida, provisoriamente, a como ler o ciúme. Às vezes, penso que a melhor instrução literária passível de se oferecida a meus alunos, em Yale ou na Universidade de Nova Iorque, será tão somente um aperfeiçoamento da experiência de que os mesmos já dispõem, em termos de ciúme sexual, a mais estética de todas as enfermidades psíquicas, como Iago bem o sabia. Deve ser por isso que Proust compara as buscas dos amantes ciumentos às obsessões do historiador da arte, como se vê quando Swann reconstitui os detalhes da vida sexual pregressa de Odette, “com mais paixão do que o esteta que interroga os documentos subsistentes da Florença do século XV, a ver se penetra mais avante na alma da Primavera, da Bella Vanna, ou da Vênus de Botticelli”. Supostamente, para historiadores da arte, essa pesquisa é prazerosa, ao passo que o pobre Swann, “sem nada lhe dizer, olhava-a pensativo”. No entanto, o sofrimento de Swann provoca-nos um prazer cômico, ainda que estremeçamos. Talvez, ler, em ficção, relatos da agonia causada pelos ciúme não nos livre de similares angústias, e, talvez, jamais nos ensine a adotar uma perspectiva cômica aplicável a nós mesmos, mas o prazer solidário que a leitura nos traz parece constituir, em si, a natureza, noção crucial em Conto do Inverno, que compete com Otelo na expressão da visão shakespeariana do ciúme de ordem sexual. Proust não nos transforma em Iagos, à medida que lemos o romance, mas deleitamo-nos com a autodestruição do narrador, pois, em Proust, todo personagem central, especialmente Marcel, torna-se seu próprio Iago. Dos vilões shakespearianos, Iago é o mais criativo, no que tange à instigação de ciúmes na vítima, nesse caso, Otelo. A genialidade de Iago é a de um grande dramaturgo que sente satisfação em atormentar e mutilar seus personagens. Em Proust, muitos protagonistas são exemplos de Iagos que se voltam contra si mesmos. O que poderia causar mais prazer estético do que um bando de Iagos que praticam automutilação? Meu trecho predileto de toda a obra de Proust ocorre depois da morte de Albertina, a amada do narrador, e resulta da minuciosa investigação que este faz de cada detalhe das paixões homossexuais da mulher:
Albertina já não existia; mas era a pessoa que me havia escondido seus relacionamentos com mulheres, em Balbec, e que imaginava ter conseguido me manter ignorante quanto à questão. Quando consideramos o que há de acontecer conosco após a morte, não é o nosso “eu” vivo que, erroneamente, ao fazê-lo, projetamos? Será mais absurdo, afinal, lamentar que uma mulher que já não existe desconhece ter vindo à tona o que ela fazia seis anos atrás, ou desejar que o público fale bem de nós daqui a um século, quando estivermos mortos? Se o segundo caso tem mais fundamento que o primeiro, o arrependimento, retrospectivo, do meu ciúme partiu do mesmo erro de visão que produz no homem o desejo da celebridade póstuma. Todavia, se a impressão da natureza solene e irrevogável da minha separação de Albertina, momentaneamente, suplantou a idéia que concebi de suas más ações, a mesma impressão serviu tão somente para agravá-las, conferindo-lhes um caráter irremediável. Vi a mim mesmo perdido na vida, como em uma praia infinita, onde estava só e onde jamais a encontraria, seguisse eu em qualquer direção.
“Como ler o romance” pode ser resumido a “como ler esse trecho”, epítome da Busca de Proust, e, portanto, modelo do romance tradicional. A noção de Proust concernente ao ciúme, bastante shakespeariana, é que, de fato, trata-se de uma busca do tempo perdido, e do espaço perdido também. Otelo, Leontes, Swann e Marcel cometem “o mesmo engano visual”, o ressentimento nutrido por ciúme que os faz pensar que já não haverá tempo suficiente, nem espaço, para desfrutarem, respectivamente, de Desdêmona, Hermione, Odette e Albertina. Esse ressentimento é mais uma expressão da grande afronta: a morte do amante, em lugar da amada. Como escritor, necessariamente, Proust almeja a imortalidade literária, que se reduz à aprovação do público-leitor um século após a publicação da obra. Os Sonetos shakespearianos chegam perto de uma associação entre o ciúme (de natureza sexual) e a inveja (de poetas rivais), mas somente Proust atribui ambas as expressões de ressentimento ao tão bem definido “engano visual”, sem dúvida, como diria Nietzsche, um dos erros da vida necessários à vida. Ao ler Proust compreendemos nossos próprios enganos visuais, a mesquinhez dos nossos ciúmes, mas também a nossa necessidade de metáfora, de ler mais um romance. Grande comediante do espírito, Proust hoje parece ter antecipado o peso do nosso atraso, de termos chegado tardiamente à história, no milênio. Proust definiu a amizade como “o ponto intermediário entre a exaustão física e o tédio mental”, e disse que o amor é “um exemplo perfeito do pouco que a realidade significa para nós”. Enquanto Nietzsche adverte que a mentira é exaustiva, Proust celebra a “mentira perfeita”, uma abertura ao novo. Referi-me, anteriormente, à rápida diminuição do número de leitores (sérios) do romance, e percebo, relendo Proust, que fuga do romance é uma rejeição da literatura sábia. Onde mais poderemos encontrar a sabedoria?
A sabedoria de Proust não é a de George Eliot, nem a de Jane Austen, mas parece existir um saber comum aos grandes romancistas, algo que poderíamos denominar “pragmatismo romanesco”, segundo o qual o verdadeiro diferencial é aquele característico dos mestres da ficção em prosa. Sobre a morte, Proust observa que ela cura o nosso anseio pela imortalidade, o que talvez seja uma ironia cruel demais para Eliot e Austen, mas que, legitimamente, leva adiante a batalha de ambas contra as ilusões. Com maior aprofundamento, Proust discerne inúmeros meios de nos dizer que eu e sociedade são irreconciliáveis, o que não significa que sejamos meros engodos, da linguagem oi dos contextos sociais. A nossa personalidade, como diz Proust, é um “múltiplo exército” , constatação implícita em George Eliot e visível em Proust, como convém ao “romance entre romances” por ele criado, que alcança um momento de verdadeira grandeza ao se atrever a definir a perdida Albertina como “grande deusa do Tempo”. Nós podemos dizer o mesmo com relação a Dorothea Brooke, personagem de Eliot em Middlemarch, ou Emma Woodhouse, idealizada por Austen, mas as respectivas criadoras não podiam fazê-lo; Proust ensina-nos a profetizar e a ter ciume, retrospectivamente, quando aprendemos a ver seus personagens como divindades do tempo, e insinua que as duas sensações são, na verdade, uma só. Os heróis e heroínas por ele criados são como os deuses em Homero, igualmente consumidos pelo ciúme e pela rivalidade.
A despeito do poder de cura de Proust, hoje não sou capaz de ler um romance como o fazia há meio século, quando me entregava àquilo que lia. Meu primeiro amor (se não me falha a memória) não foi uma menina de carne e osso, mas Marry South, personagem de Thomas Hardy em The Woodlanders, e sofri terrivelmente quando ela corta os lindos cabelos para poder vendê-los. Poucas experiências equiparam-se à realidade de se apaixonar por uma heroína, e pelo livro que conta a sua história. A chegada da velhice pode ser mantida pelo aprofundamento da visão que se tem de Proust. Como ler o romance? Com carinho, se o livro mostra-se capaz de abarcar o nosso afeto; e com ciúme, porque o romance pode se tornar a imagem dos nossos limites em termos de tempo e lugar, ainda que seja capaz de oferecer-nos a bênção proustiana: mais vida.

BOOM, Harold. “Como e por que ler”. Tradução: José Roberto O’Shea. Editora Objetiva, 2001.

Thursday, March 13, 2008

Os intelectuais.

Ao longo dos últimos 200 anos, a influência dos intelectuais vem crescendo regularmente. Na verdade, o surgimento do intelectual secular foi um fator decisivo para dar forma ao mundo moderno. Visto de uma perspectiva histórica ampla, trata-se em muitos aspectos, de um fenômeno novo. Não há dúvidas de que desde suas primeiras encarnações como padres, escribas ou profetas, os intelectuais exigiram para si a tarefa de orientar a sociedade. Porém, sendo eles guardiães de culturas hieráticas, fossem primitivas ou sofisticadas, as inovações morais e ideológicas que eles propunham eram limitadas pelos cânones da autoridade externa e pela herança da tradição. Eles não eram, nem podiam ser, espíritos livres ou aventureiros do pensamento.
Com o declínio do poder do clero no século XVIII, um novo tipo de mentor surgiu para preencher o vazio e conquistar os ouvidos da sociedade. O intelectual secular, mesmo sendo deísta, cético ou ateu, estava tão disposto quanto qualquer pontífice ou presbítero a dizer como os homens deviam agir diante dos problemas dessa sociedade. Desde o princípio, expressou uma devoção especial para com os interesses da humanidade e uma predisposição evangélica para fazê-los avançar graças a seu ensino. Deu a essa tarefa auto-imposta um sentido muito mais radical do que tinham dado seus predecessores do clero. Não se sentiam limitados por nenhum corpus de uma religião revelada. A sabedoria coletiva do passado, o legado da tradição, os códigos prescritos por uma experiência ancestral existiam para ser seletivamente seguidos ou para ser completamente rejeitados, dependendo apenas do bom senso de cada um. Pela primeira vez na história humana - e com uma arrogância e audácia crescentes -, os homens se diziam capazes de diagnosticar os males da sociedade e curá-los com sua inteligência auto-suficiente; mais: diziam ser capazes de traçar um plano pelo qual não apenas a estrutura social, mas os hábitos básicos do ser humano podiam ser transformados para melhor. Ao contrário de seus antecessores sacerdotais, eles não eram servos nem intérpretes dos deuses; eram seus substitutos. O herói deles era Prometeu, que roubou o fogo celestial e o trouxe para a Terra.
Uma das características mais marcantes dos novos intelectuais seculares era o prazer com que submetiam a religião e os respectivos protagonistas a uma análise crítica. Até que ponto esses grandes sistemas de fé trouxeram benefícios ou malefícios à humanidade? Em que medida esses papas e pastores viveram de acordo com os próprios preceitos de castidade e sinceridade, de caridade e benevolência? Tanto no caso das igrejas como no do clero, os veredictos foram rigorosos. Hoje, depois de dois séculos durante os quais a influência da religião continuou decrescendo e os intelectuais seculares desempenharam um papel cada vez mais importante no caráter de nossas atitudes e instituições, já é hora de examinarmos suas vidas, tanto em âmbito público como privado. Pretendo avaliar particularmente as credenciais morais e de julgamento que os intelectuais possuíam ou não para ditar regras de conduta à humanidade. Como administravam suas próprias vidas? Que grau de retidão demonstravam para com a família, os amigos e os companheiros? Eram desonestos em seus relacionamentos sexuais e financeiros? Será que eles falavam e escreviam a verdade? E até que ponto seus sistemas teóricos resistiram ao teste do tempo e da práxis?


(JOHNSON, Paul. Os intelectuais. Páginas 11 e 12. Editora Imago.)

Friday, January 25, 2008

Paradise Lost
Of Man's first disobedience, and the fruit
Of that forbidden tree whose mortal taste
Brought death into the World, and all our woe,
With loss of Eden, till one greater Man
Restore us, and regain the blissful seat,
Sing, Heavenly Muse, that, on the secret top
Of Oreb, or of Sinai, didst inspire
That shepherd who firs taught the chosen seed
In the beginning how the heavens and earth
Rose out of Chaos: or, if Sion hill
Delight thee more, and Siloa's brook that flowed
Fast by the oracle of God, I thence
Invoke thy aid to my adventurous song,
That with no middle flight intends to soar
Above th'Aonian mount, while it pursues
Things unattemted yet in prose or rhyme.



Minha tradução "porca":
Do pecado original e do fruto
da árvore proibida cujo sabor fatal
Trouxe morte para o mundo, e todos os nosso males,
com a perda do Éden, até que o Maior Homem
nos restaurasse, e resgatasse novamente a graça
Canta, ó Musa celestial, Que naquele cume secreto
de Orebe, ou do Sinai, inspirou
aquele pastor que ensinou - primeiro os descendentes escolhidos -
Como - No princípio - os céus e a terra
se ergueram para fora do Caos: ou, o alto de Sião
e o riacho de Siloé que flui veloz
Do Oráculo Divino te agrada mais. Dalí
Clamo por ajuda para minha aventurosa canção,
A qual não prentende fazer um vôo incompleto
Sobre o monte Aonian, enquanto persegue coisas
que ainda não foram apreendidas em prosa ou verso.

Subscribe Now: standard

Powered By Blogger