Friday, January 19, 2007

Cartas a um jovem poeta II
Viareggio perto de Pisa (Itália),
5 de abril de 1903.

Perdoe-me, caro e prezado senhor, o lembrar-me só agora, com gratidão, de sua carta de 24 de fevereiro: estive todo este tempo indisposto, embora não doente, mas opresso por uma fraqueza parecida com influenza, e que me tornou incapaz de fazer qualquer coisa. Finalmente, não vendo melhoras, vim para as margens deste mar do sul cuja caridade já me valeu uma vez. Mas ainda não estou bom; custa-me escrever e assim o senhor deve tomar estas poucas linhas como se fossem muitas mais.
Deve naturalmente saber que toda carta sua me alegrará. Mostre-se, porém, indulgente com as respostas, que talvez o deixem mais de uma vez de mãos vazias. Com efeito, em última análise, é precisamente nas coisas mais profundas e importantes que estamos indizivelmente sós, e para que um possa aconselhar ou mesmo ajudar a outro, muito deve acontecer; muitos sucessos favoráveis devem ocorrer; toda uma constelação de eventos se deve reunir para que uma única vez se alcance um resultado feliz.
Quero falar-lhe hoje apenas de duas coisas. Primeiro, da ironia.
Não se deixe dominar por ela, sobretudo em momentos estéreis. Nos momentos criadores procure servir-se dela, como de mais um meio para agarrar a vida. Utilizada com pureza, ela também é pura e não nos deve envergonhar. Ao verificar, porém, que se familiariza demais com ela, temendo uma intimidade excessiva, volte-se para objetos grandes e graves, diante das quais ela se encolhe desajeitada. Busque o âmago das coisas, aonde a ironia nunca desce; e ao sentir-se destarte como que à beira do grandioso, examine ao mesmo tempo se essa concepção das coisas deriva de uma necessidade de seu ser. Sob a influência das coisas graves, com efeito, a ironia ou o abandonará por si mesma (se tiver sido algo de ocasional) ou então se reforçará (caso lhe pertença como coisa inata) num instrumento sério, enquadrando-se no conjunto dos meios com o que o senhor deverá moldar a sua arte.
A segunda coisa que lhe queria dizer é a seguinte :
De todos os meus livros só alguns me são indispensáveis, mas há dois que se encontram entre meus objetos de uso por onde quer que ande. Tenho-os comigo aqui também: a Bíblia e os livros do grande poeta dinamarquês Jens Peter Jacobsen. Pergunto-me se os conhece. Pode facilmente adquiri-los, sendo que parte deles foi publicada na coleção Reklam em ótima tradução. Adquira o volumezinho Seis novelas de Jens Peter Jacobsen e seu romance Niels Lyhne e comece pela primeira novela do primeiro volume intitulada Mogens. Um mundo se abrirá aos seus olhos: a felicidade, a riqueza, a inconcebível grandeza de um mundo. Viva nesses livros um momento, aprenda neles o que lhe parecer digno de ser aprendido, mas, antes de tudo, ame-os. Este amor ser-lhe-á retribuído milhares de vezes e, como quer que se torne sua vida, ele passará a fazer parte, estou certo, do tecido de seu ser, como uma das fibras mais importantes, no meio das suas experiências, desilusões e alegrias.
Se eu tivesse de confessar com quem aprendi alguma coisa acerca da essência do processo criador, sua profundidade e eternidade, só poderia indicar dois nomes: o de Jacobsen, este poeta máximo, e o de Auguste Rodin, o escultor que não tem igual entre todos os artistas de nossos dias.
Que tudo lhe suceda bem em seus caminhos.
Seu

Rainer Maria Rilke

2 comments:

Clarissa said...

Portugal,
19 de Janeiro de 2007.

Recebi agora a sua carta, os correios devem tê-la retido, nas suas viagens pelo mundo, todos estes anos.
Folgo em sabê-lo melhor dessa indisposição que o tomou. Eu própria me sinto um pouco abalada, imersa em muito trabalho e o meu corpo parece não querer obedecer-me quando lhe digo serem horas de levantar da cama.
As linhas que me envia são sempre fonte de reflexão e uma companhia que se insinua na minha alma por todo o dia. É grande o prazer que me dá esta troca de correspondência, mesmo quando os anos se interpõem entre nós.
Quanto ao assunto primeiro da sua amável carta, a ironia:
O âmago das coisas é precisamente onde é tão difícil chegar.Esquecer o aleatório e fixar-me no que realmente interessa, na grandeza do mundo e das gentes, é a luta que tenho travado. As letras que se agrupam, na folha em branco, perante os meus olhos, dão-me ensinamentos que não sabia ter, por isso concluo, que me são ditadas por uma força maior que desconheço. Fujo cada vez mais para este meu recanto de escrita, à espera de aprender a ouvir o mundo e as pessoas que nem sempre compreendo.
Quanto aos livros, Jens Peter Jacobsen, não conheço, terei o maior prazer em os encomendar e procurar por entre as suas páginas as palavras que lhe segredaram tamanha sabedoria. Já a Bíblia, percebo-o, prezado senhor.
Eu ando às voltas com a biblioteca de Nag Hammadi, já vai em dois anos. Os livros não se deixam compreender de imediato, resistem como os apaixonados que se querem fazer amar. Vou conversando com eles, respeitamo-nos mutuamente, não impomos prazos, e tem crescido entre nós uma grande amizade.
Prezado senhor, espero que esta carta lhe chegue, é a palavra escrita, já aprendi, que tece laços intemporais.
Que os bons ventos do saber soprem por seu lar.

Clarissa.

Blogildo said...

Clarissa,

estou adorando suas réplicas a Rilke. Duvido que as carta de Kappus tenham chegado aos pés da sua.
Suas reflexões são profundas e honestas. As palavras fluem suavemente, mas ainda com uma força impressionante!

Já virei seu fã!
Onildo

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