Monday, January 22, 2007

Cartas a um jovem poeta VI.
Roma, 23 de dezembro de 1903.

Meu caro Sr. Kappus,
Não quero que fique sem uma saudação minha pelo natal, quando, no meio da festa, carregar a sua solidão mais dificilmente do que nunca. Mas se verificar, nesse momento, que a sua solidão é grande, alegre-se com isto. Que seria, com efeito, uma solidão (faça essa pergunta a si mesmo) que não tivesse grandeza ? Há uma solidão só: é grande e difícil de se carregar. Quase todos, em certas horas, gostariam de trocá-la por uma comunhão qualquer, por mais banal e barata que fosse; por uma aparência de acordo insignificante com quem quer que seja; com a pessoa mais indigna. Mas talvez sejam estas, justamente, as horas em que ela cresce, pois o seu crescimento é doloroso como o de um menino e triste como o começo das primaveras. Mas tudo isto não o deve desorientar. O que se torna preciso, é no entanto isso : solidão, uma grande solidão interior. Entrar em si mesmo, não encontrar ninguém durante horas - eis o que se deve saber alcançar. Estar sozinho como se estava quando criança, enquanto os adultos iam e vinham, ligados a coisas que pareciam importantes e grandes porque esses adultos tinham um ar tão ocupado e porque nada se entendia de suas ações.
Se depois um dia a gente descobre que suas ocupações são mesquinhas e suas profissões petrificadas, sem ligação alguma com a vida, por que não voltar a olhá-los outra vez como uma criança olha para uma coisa estranha, do âmago de seu próprio mundo, dos longes de sua própria solidão que é, por si só, trabalho, dignidade e profissão ? Por que querer trocar a sábia não-compreensão de uma criança pela defensiva e pelo desprezo, - uma vez que a não-compreensão significa solidão, ao passo que defensiva e desprezo eqüivalem à participação nas próprias coisas cujo afastamento se deseja ?
Pense, caro senhor, no mundo que leva em si e chame o seu pensamento como quiser: reminiscência da sua própria infância ou saudade do futuro - o que importa apenas, é prestar atenção ao que nasce dentro de si e colocá-lo acima de tudo o que observar em redor. Os seus acontecimentos interiores merecem todo o seu amor; neles de certa maneira deve trabalhar e não perder demasiado tempo e coragem em esclarecer suas relações com os homens. Aliás, quem lhe diz que as tem ? Sua profissão, bem o sei, é dura, cheia de contradições para si; previ a sua queixa e sabia que ela havia de vir. Agora que chegou não o posso tranqüilizar, mas apenas aconselhar-lhe que examine se todas as profissões não são assim cheias de exigências, de hostilidade contra o indivíduo, como que ensopadas do ódio daqueles que, mudos, resmungando, se tiveram de conformar com o simples dever. A posição em que agora deve viver não é mais carregada de convenções, preconceitos e erros do que todas as outras. Se há algumas que exigem bem uma liberdade maior, não existe nenhuma que seja larga e ampla em si, relacionada com grandes coisas de que se compõe a verdadeira vida. Mas o solitário é como uma coisa submetida às profundas leis. Ao sair para a manhã que aponta, ao olhar para a noite cheia de eventos, se chega a sentir tudo o que aí acontece, todos os encargos se desprenderão dele como de um morto, embora se encontre no meio vibrante da vida. O que agora deve experimentar , caro Sr. Kappus, em sua qualidade de oficial, tê-lo-ia sentido em qualquer das profissões existentes. Mesmo que, fora de qualquer posto, tivesse procurado apenas contatos leves e independentes com a sociedade, este sentimento constrangedor não lhe seria poupado. - Por toda parte as coisas são assim. Mas isto não é um motivo de angústia ou tristeza. Não tendo nenhuma comunhão com os homens, procure ficar perto das coisas, que não o abandonarão. Ainda há as noites e os ventos que passam pelas árvores e percorrem muitos países. No mundo das coisas e dos bichos tudo está ainda cheio de acontecimentos de que o senhor pode participar. As crianças são ainda como o senhor era quando criança , tão tristes e tão felizes - e quando pensar na sua infância, torne a viver entre elas, as crianças solitárias: os adultos voltarão a não ser nada, e suas dignidades não terão nenhum valor.
Se porventura lhe for temível e penoso pensar na sua infância, na simplicidade e no silêncio ligados a ela, por não poder mais crer em Deus que nela se encontra por toda a parte, então pergunte a si mesmo, caro Sr. Kappus, se realmente terá perdido a Deus. Não será, antes , que o senhor ainda não o possuiu ? Aliás, quando o teria possuído ? Parece-lhe que alguém que realmente o possui o possa segurar, a Ele que os homens custam a carregar e cujo peso esmaga os anciãos ? Parece-lhe que alguém que realmente o possui o possa perder como um seixo ? Não lhe parece, antes, que aquele que o teve pode ser por Ele sentido ? Se porém reconhece que Ele não existia na sua infância, nem antes; se admite que Cristo foi iludido pela sua saudade e Maomé enganado por seu orgulho; se percebe com espanto que Ele não existe nem mesmo nesta hora em que falamos d'Ele - que coisa então o autoriza a sentir falta de alguém que nunca foi e a procurá-lo como se estivesse perdido ?
Por que não pensar que Ele é o vindouro, aquele que está por vir desde a eternidade, o futuro, o fruto final da árvore de que nós somos as folhas : Que é que o impede de projetar o seu nascimento para os tempos posteriores e viver a sua vida como um dia belo e doloroso de uma grandiosa gravidez ? Não vê como tudo o que acontece é sempre um começo ? Não poderia ser , então o começo d'Ele, o pois todo o começo em si é tão belo ? Se Ele é o mais perfeito, não deve ter havido algo menor antes d'Ele para que Ele se pudesse escolher a si mesmo dentro da plenitude e abundância ? Não deverá ser Ele o último, para encerrar tudo em si ? Que sentido teria a nossa vida se Aquele a que aspiramos já tivesse sido ? Como as abelhas reúnem o mel, assim nós tiramos o que há de mais doce em tudo para o construirmos. Começamos pelo pormenor, pelo insignificante (posto que venha do amor), depois pelo trabalho e pelo repouso, por um silêncio ou por uma pequena alegria solitária; por tudo o que fazemos, sem participantes ou aderentes, iniciamos Esse que não podemos compreender, do mesmo modo que os nossos antepassados não puderam compreender a nós mesmos. No entanto, estes seres desaparecidos há muito, estão em nós, em nossos pensadores, pesando sobre o nosso destino, zumbindo em nosso sangue, emergindo num gesto que sobe do âmago dos tempos.
Existe algo que lhe possa tirar a esperança de estar futuramente n'Ele, no longínquo, no extremo ?
Festeje o Natal, caro Sr. Kappus, com o pio sentimento de que talvez Ele, para começar, aguarde do senhor justamente esta angústia de viver. Talvez justamente estes dias de transição sejam o tempo em que tudo no senhor trabalha n'Ele, como outrora , quando criança o senhor n'Ele trabalhou palpitante. Não seja impaciente e mal-humorado. Lembre-se de que a menor coisa que podemos fazer consiste em lhe dificultar tão pouco o nascimento quanto a terra dificulta o advento da primavera, quando ela tem de vir.
Fique alegre e tranqüilo.


Seu
Rainer Maria Rilke

1 comment:

Clarissa said...

O carteiro já chegou :)

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