Friday, January 19, 2007

Cartas a um jovem poeta III

De passagem por Worpswede, perto de
Bremen, 16 de julho de 1903.

Deixei Paris há uns dez dias, bastante indisposto e cansado, e vim para esta grande planície nórdica cuja vastidão, silêncio e céu hão de curar-me outra vez. Mas, entrei logo numa longa chuva, que somente hoje deixou um pouco de claridade sobre o país sacudido de inquietação. Aproveito este primeiro momento de luz para cumprimentá-lo, caro senhor.
Querido Sr. Kappus, deixei uma carta sua sem resposta durante muito tempo. Isto não quer dizer que o tenha esquecido. Pelo contrário. É uma daquelas cartas que a gente relê cada vez que as volta encontrar entre as outras. Nela o reconheci como se estivesse muito perto de mim. Era sua carta de dois de maio, que provavelmente não terá esquecido. Ao lê-la, como o faço agora, no grande silêncio destes longes, sinto-me comovido por sua bela preocupação com a vida, mas ainda do que me senti em Paris onde tudo ressoa e esmorece de outro modo, devido ao excessivo barulho que faz as coisas estremecerem. Aqui, tendo em redor de mim uma possante região sobre a qual passam ventos vindos dos mares, bem sinto que nenhum homem pode responder às perguntas e aos sentimentos que têm vida própria no âmago de seu ser. Mesmo os melhores se enganam no uso das palavras quando estas têm de significar o que há de mais discreto, de quase indizível. Creio, contudo, que o senhor não deixará de encontrar uma solução, se se agarrar a coisas que se assemelham a si, como as que agora dão repouso aos meus olhos. Se se agarrar à natureza , ao que ela tem de simples, à miudeza que quase ninguém vê e que tão inesperadamente se pode tornar grande e incomensurável ; se possuir este amor ao insignificante; se procurar singelamente ganhar como um servidor a confiança daquilo que parece pobre – então tudo se lhe há de tornar fácil, harmonioso e, por assim dizer, reconciliador, - não talvez no intelecto, que ficará atrás espantado, mas sim na sua mais íntima consciência, que vigia e sabe. O senhor é tão moço, que aquém de todo começar que lhe rogo, como melhor posso, ter paciência com tudo o que há para resolver em seu coração e procurar amar as próprias perguntas como quartos fechados ou livros escritos num idioma muito estrangeiro. Não busque por enquanto respostas que não lhe podem ser dadas, porque não as poderia viver. Pois trata-se precisamente de viver tudo. Viva por enquanto as perguntas. Talvez depois, aos poucos, sem que o perceba, num dia longínquo, consiga viver a resposta. Quiçá carregue em si a capacidade de criar e moldar, - como uma maneira de ser particularmente feliz e pura. Eduque-se para isso, mas aceite o que vier com toda confiança. Se vier só da sua vontade, de qualquer necessidade de seu ser íntimo, aceite-o e não o odeie. A carne é um peso difícil de carregar. Mas é difícil o que nos incumbiram; e quase tudo que é grave é difícil : e tudo é grave. Se chegar a reconhecer isso e a alcançar, - partindo de si, de sua inclinação e de sua maneira de ser, de sua experiência e infância – uma relação inteiramente sua (livre de convenções e costumes) com a carne, não mais deverá temer o perder-se indigno de sua posse mais preciosa.
A volúpia carnal é uma experiência dos sentidos, análoga ao simples olhar ou à simples sensação com que um belo fruto enche a língua. É uma grande experiência sem fim que nos é dada; um conhecimento do mundo; a plenitude e o esplendor de todo o saber. O mal não é que nós a aceitemos; o mal consiste em quase todos abusarem dessa experiência, malbaratando-a fazendo dela um mero estímulo para os momentos cansados de sua existência, uma simples distração, em vez de uma concentração interior para as alturas. Até o comer, os homens transformaram em algo diferente: a carência de um lado, o excesso de outro perturbaram a clareza dessa necessidade; e todas as necessidades elementares em que a vida se renova tornaram-se igualmente turvas. O indivíduo, porém, pode esclarecê-las pra si mesmo e vivê-las às claras (não todos os indivíduos, demasiado dependentes, mas pelo menos os solitários). Estes podem lembrar-se de que toda beleza em animais e plantas é uma forma silenciosa e durável de amor e desejo; e podem ver o animal como a planta, unindo-se, multiplicando-se e crescendo paciente e docilmente, não por gozo físico ou dor física, mas curvando-se diante de necessidades maiores que a volúpia e a dor e mais poderosas que a vontade e a resistência. Pudesse o homem acolher com maior humildade este segredo de que a terra está cheia até em suas coisas mais ínfimas; carregá-lo e suportá-lo com mais gravidade, sentindo-lhe o peso, - em vez de o tratar com leviandade. Pudesse ter respeito para com a própria fecundidade, que é uma só, embora pareça ora espiritual ora corporal. A criação intelectual, com efeito provém também da criação carnal. É da mesma essência; é apenas uma repetição mais silenciosa, enlevada e eterna da volúpia do corpo. "A idéia de ser criador, de gerar, de moldar" não é nada sem sua grande e perpétua confirmação na vida; nada sem o consenso mil vezes repetido das coisas e dos animais. Seu gozo não é tão indescritivelmente belo e rico senão porque está cheio de reminiscências herdadas da geração e da parte de milhões de seres. Numa idéia criadora revivem mil noites de amor esquecidas que a enchem de altivez e altitude. Aqueles que se juntam à noite e se entrelaçam num baloiçar de volúpia, executam obra grave, reunindo doçuras, profundezas e forças para a canção de algum poeta vindouro que há de surgir para dizer indizíveis prazeres. Eles estão evocando o futuro; mesmo que estejam enganados e se abracem cegamente, o futuro virá apesar de tudo; um homem novo se há de erguer. Sobre a base do acaso que parece cumprir-se nesse abraço, acorda a lei que faz com que um germe forte e poderoso avance até o óvulo que vem aberto ao seu encontro. Não se deixe enganar pela superfície: - nas profundidades tudo se torna lei. Aqueles que vivem mal este segredo (é o caso da maioria) , perdem-no apenas para si mesmos, pois transmitem-no a outros como a uma carta lacrada sem o saberem. Não se deixe iludir pela multiplicidade dos nomes ou pela complicação dos casos. Talvez paire acima de tudo uma imensa maternidade, um comum desejo. A beleza da virgem, um ser "que – como diz com tanto acerto – ainda não cumpriu nada" é maternidade que se pressente e se prepara, que anseia e deseja. A beleza da mãe é a maternidade que serve; a da anciã uma grande recordação. No próprio homem, parece-me, há maternidade carnal e espiritual; a sua criação também é uma maneira de dar à luz. Talvez os sexos sejam mais aparentados do que se pensa e a grande renovação do mundo talvez resida nisto: o homem e a mulher, libertados de todos os sentimentos falsos, de todos os empecilhos, virão a procurar-se não mais como contrastes, mas sim como irmãos e vizinhos; a juntar-se como homens para carregarem juntos, com simples e paciente gravidade, a sexualidade difícil que lhes foi imposta.
Mas tudo isto que talvez um dia seja possível a muitos, o solitário pode prepará-lo desde já, e construí-lo com suas mãos, que erram menos. Por isso, caro senhor, ame a sua solidão e carregue com queixas harmoniosas a dor que ela lhe causa. Diz que os que sente próximos estão longe. Isto mostra que começa a fazer-se espaço em redor de si. Se o próximo lhe parece longe, os seus longes alcançam as estrelas, são imensos. Alegre-se com esta imensidade, para a qual não pode carregar ninguém consigo. Seja bom para com os que ficarem atrás, mostre-se-lhes calmo e sereno sem os atormentar com suas dúvidas, nem os assustar com uma confiança ou uma alegria que eles não poderão compreender. Procure realizar com eles uma comunhão qualquer, fiel e simples, que não se deverá necessariamente transformar à medida de que o senhor mesmo se transforme. Ame neles a vida sob uma forma estrangeira e tenha indulgência com os homens que, envelhecidos, temem a solidão a que o senhor se confia. Evite dar alimento ao drama sempre pendente entre pais e filhos o qual gasta muita força destes e consome amor daqueles; amor que, embora incompreensivo, age e aquece. Não lhes peça conselho e não conte com a sua compreensão, mas acredite num amor que lhe é conservado como uma herança e fique certo de que há nesse amor uma força e uma bênção a que não se arrancará mesmo se for para muito longe.
É bom o senhor abraçar antes de tudo uma profissão, que o tornará independente e entregará exclusivamente a si, em todos os sentidos. Aguarde com paciência, a ver se a sua vida íntima se sente limitada pela forma dessa profissão considero-a muito difícil e cheia de exigências , carregada de convenções e quase sem margem para uma interpretação pessoal de seus deveres. Mas a sua solidão há de dar-lhe, mesmo entre condições muito hostis, amparo e lar, e partindo dela encontrará todos os cominhos. Todos os seu desejos estão prontos a acompanhá-lo e minha confiança está consigo.

Seu
Rainer Maria Rilke

1 comment:

Clarissa said...

20 de Janeiro de 2007, numa manhã de nevoeiro.

Está nevoeiro por estas bandas; senti-me grata por esta condição meteorológica e vim para junto do rio, para um pequeno e aconchegante café, onde servem um pequeno-almoço digno da minha avó. Gosto de fazer perdurar a antecipação das palavras que me envia, de as sentir no bolso do meu casaco à espera do momento oportuno.
Abri, pois, o envelope, ao sabor de um café fumegante, envolta neste nevoeiro que não me deixa distrair com outras paisagens que não as que seguro nas mãos. É verdade que este manto de humidade é impiedoso com os meus ossos, mas atrai-me cada vez mais para este lugar junto ao rio. Aqui as perguntas que me assolam o espírito fazem mais sentido, e o embaraço, pelas respostas que tardam, parece ser menor. Será tolice minha, mas parece que, nestas manhãs, a natureza se torna minha aliada e me mostra o mundo como ele é de facto, na plenitude do seu mistério. É verdade que o meu corpo anseia por dias de sol, mas a luz parece-me ocultar mais que aquilo que realmente desvela. É pela luz interior que anseio, e essa, já sei, devo procurá-la no resguardo de distracções, no olhar recatado que logo se assume como cego. Encontro alguma tranquilidade neste equilíbrio entre a cegueira que o nevoeiro me oferece, e a cegueira desta alma que anseia por respostas. É bem certo, como diz, que por vezes me esqueço de viver o prazer da pergunta, que tenho que aprender o prazer da espera.
Pousei, por instantes, a caneta na mesa de madeira, e inspirei o ar marinho. Confesso que me senti deliciada. Tem razão, meu amigo, há muitas formas de fazer perguntas e encontrar respostas, por vezes basta esquecer a procura e admirar a beleza de uma humidade que se entranha por todo o lado. Terei que ser mais paciente, ensinou-me o nevoeiro.
Por estes recantos, que o rio esconde de olhares mais ávidos de multidões, tenho encontrado esse espaço de que fala. Não é a solidão que me apoquenta; penso até por vezes que tenho que ser mais humilde e paciente com as pessoas que me rodeiam. Aborrecem-me muitas vezes, correm demais e são demasiado surdas para o mistério; a verdade é que não tenho muita paciência para elas, parecem apreciar demasiado a cegueira em que estão imersos. Passo cada vez mais tempo em longas conversas comigo própria, ajuda-me este corpo que entra em piloto automático e me deixa divagar sem ser inconveniente com esses outros que me rodeiam. E assim tenho conseguido ganhar espaço e abraçar o rio sem me deter tanto nas águas que nele correm.
Prezado amigo, um pequeno barco de pescadores acabou de furar a cortina de nevoeiro, que visão maravilhosa. Talvez um dia a possamos compartilhar neste pedaço de terra onde habito.

Sua amiga, Clarissa.

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