Wednesday, October 24, 2007

A Utopia da Vida Exata


Devem ser ditas algumas palavras a respeito de um sorriso, ainda por cima um sorriso masculino, porque havia uma barba, criada para essa ação masculina de sorrir dentro da barba: trata-se do sorriso dos homens de ciência que tinham aceitado o convite de Diotima e escutavam os famosos artistas. Embora sorrissem, não se pense que era com ironia. Ao contrário, sua expressão era de respeito e incompetência, coisas de que já falamos. Mas também não nos enganemos. Isso vale para sua consciência, mas no seu subconsciente, para usar essa palavra corrente, ou mais corretamente ainda, em seu estado geral, eram pessoas nas quais uma tendência para o mal rumorejava como a chama debaixo do caldeirão.

Naturalmente isso parece um comentário paradoxal, e um professor universitário diante do qual o quiséssemos apresentar provavelmente diria que ele apenas serve à verdade e ao progresso, e não sabe de nada mais; pois essa é a sua ideologia profissional. Mas todas as ideologias profissionais são nobres, e os caçadores, por exemplo, estão longe de se considerarem os carniceiros da floresta; muito antes, chamam-se legítimos amigos dos animais e da natureza, assim como comerciantes cultivam o princípio do lucro honesto, e os ladrões afirmam que seu deus é o deus dos comerciantes, isto é, o nobre e internacional Mercúrio, que liga os povos. Portanto, não se deve valorizar muito como interpretam sua atividade aqueles que a exercem.

Se nos perguntarmos de maneira imparcial como a ciência assumiu a forma que tem hoje em dia - o que em si é importante, pois ela nos domina, e nem mesmo um analfabeto está a salvo dela, pois aprende a conviver com incontáveis coisas de origem científica - , já temos dela outra imagem. Segundo tradição fidedigna, isso começou no século XVI, uma era de intensa mobilidade espiritual, quando já não se tentava mais penetrar os segredos da natureza, como se fizera durante dois mil anos de especulação religiosa e filosófica, mas nos contentávamos, de um modo que só pode ser chamado de superficial, com a pesquisa de sua superfície. O grande Galileu Galilei, que sempre é nomeado em primeiro lugar nesses casos, acabou com a questão do motivo imanente que fazia a natureza ter aversão a espaços vazios, de forma que levava um corpo em queda a atravessar um espaço após o outro, preenchendo-o, até finalmente chegar em solo firme; ele satisfez-se com uma constatação muito mais comum: simplesmente pesquisou a velocidade de queda desse corpo, o trajeto que ele percorre, o tempo que consome, e a velocidade crescente que assume. A Igreja Católica cometeu um grave erro ameaçando esse homem de morte, e obrigando-o a se desdizer, em vez de o matar sem muitos rodeios; pois da visão das coisas próprias de Galileu e seus parentes espirituais surgiram - em pouco tempo, se usarmos uma medida de tempo histórico - os horários de ferrovias, as máquinas de trabalho, a psicologia fisiológica e a corrupção moral da atualidade, com as quais ela já não consegue concorrer. Provavelmente a Igreja cometeu esse erro por inteligência excessiva, pois Galileu não foi apenas descobridor da lei da queda dos corpos e do movimento terrestre, mas um inventor pelo qual, diríamos hoje, se interessaram os grandes capitalistas; além disso, não foi o único dominado pelo novo espírito naqueles tempos; ao contrário, relatos históricos revelam que a objetividade que o animava se difundia, ampla e impetuosa, como uma doença contagiosa; e por mais que hoje nos aborreça ouvir chamar alguém de objetivo, uma vez que julgamos estar saturados de objetividade, naquele tempo despertar da metafísica e passar a uma contemplação sóbria das coisas, segundo muitos testemunhos deve ter sido uma embriaguez e um incêndio de objetividade.

Mas se nos perguntarmos o que deu na humanidade, para mudar desse jeito, a resposta é que ela simplesmente fez o que qualquer criança ajuizada quando tenta andar cedo demais; sentou-se no chão, e tocou-o com uma parte confiável e pouco nobre do corpo: fez isso com aquilo com que nos sentamos. Pois o estranho é que a Terra se mostrou tão incrivelmente sensível a isso e desde esse contato deixa que lhe extraiam descobertas, comodidades e conhecimentos numa profusão quase milagrosa.

Depois dessa pré-história podemos dizer, não sem acerto, que é no milagre do Anticristo que vivemos hoje; pois aquela metáfora do contato não se deve interpretar só no sentido da confiabilidade, mas também do indecente e do proibido. Com efeito, antes que as pessoas intelectualizadas descobrissem o prazer dos fatos concretos, só guerreiros, caçadores e comerciantes, portanto naturezas astutas e violentas, o conheciam. Na luta pela sobrevivência não há lugar para sentimentalismo espirituais, só para o desejo de matar o adversário da maneira mais rápida e eficaz; nisso, todo mundo é positivista; também não seria virtude no mundo dos negócios deixar-se iludir em vez de agir concretamente, e com isso, em última análise, o lucro é a superação psicológica do outro, dentro das circunstâncias.

Se, de outro lado, observamos as qualidades que levam às descobertas, notamos ausência do escrúpulo tradiciona e de inibição, notamos coragem, iniciativa e espírito de destruição, ausência de reflexões de ordem moral, barganha paciente pelas menores vantagens, tenacidade no caminho para o objetivo desejado, caso for preciso, e respeito por números e medidas, o que é a maior expressão de desconfiança diante de qualquer incerteza. Em suma, tudo o que vemos são os velhos pecados dos caçadores, guerreiros e comerciantes, apenas transferidos para o campo intelectual, e transformados em virtudes. E, assim, nçao têm mais a ver com a luta por vantanges pessoais e relativamente vulgares; mas o elemento primitivo do mal, como se pode dizer, não foi perdido, pois é aparententemente eterno e indestrutível; ao menos, tão eterno quanto o ideal humano, pois é simplesmente o desejo de passar uma rasteira nesse ideal e vê-lo cair de cara no chão. Quem não conhece a maligna sedução que, quando olhamos um belo vaso vitrificado, vem com a idéia de que o poderíamos quebrar em mil cado com um só golpe? Intensificada até o amargurado heroísmo que nos diz que na vida não podemos confiar em nada senão no que for absolutamente seguro, essa tentação é o sentimento fundamental na objetividade da ciência; e se, por respeito, não a quisermos batizar de Demônio, pelo menos admitamos sentir um leve cheiro de enxofre.

Podemos começar com a singular predileção do pensamento científico por explicações mecânicas, estatísticas, materiais, às quais se retirou o coração. Encarar a bondade apenas como forma especial de egoísmo; ligar emoções com secreções internas; constatar que o ser humano consiste em oito ou nove décimos de água; declarar que a famosa liberdade ética do caráter é um anexo mental da livre-troca, surgido automaticamente; atribuir a belza à boa digestão e bons tecidos adiposos; colocar reprodução e suicídio em gráficos anuais que mostram como obrigatório aquilo que parecia vir de livre decisão; considerar o êxtase e a demência como aparentados; comparar como extremidades retal e oral da mesma coisa o ânus e a boca: esse tipo de idéias que revelam o truque que existe no teatro mágico das ilusões humanas sempre encontram uma espécie de preconceito favorável, para fazer passar por particularmente científicas. O que amamos aí é a verdade; mas em torno desse amor tão puro existe uma predileção pela decepção, pelo constrangimento, pela inexorabilidade, pela fria repulsa e censura áspera, e uma maliciosa predileção, ou pelo menos uma involuntária emanação emocional desse tipo.

Em outras palavras, a voz da verdade tem um rumor secundário suspeito, mas os mais estreitamente envolvidos não querem ouvir falar nisso. Bem, a psicologia hoje conhece muitos desses rumores secundários abafados, e também aconselha trazê-los para a superfície e torná-los tão nítidos quanto possível, para impedir seus efeitos perniciosos. Como seria, pois, se quiséssemos fazer a prova e sentíssemos a tentação de assumir esse equívoco gosto pela verdade e suas malignas vozes secundárias cheias de misantropia e satanismo; por assim dizer, a tentação de vivê-lo? Bem, surgiria mais ou menos a mesma falta de idealismo já descrita sob o título de Utopia da Vida Exata, uma tendência para tentativa e retratação, mas submetida à dura lei marcial da conquista intelectual. Essa atitude com a vida não é de assistência e apaziguamento; não respeita simplesmente o que é digno de se viver, mas considera-o uma linha de demarcação que luta pela verdade interior transfere constantemente de lugar. Duvidaria da sacralidade de um stado momentâneo do mundo, não por ceticismo, e sim com a visão de quem está subindo, mas sabe que o pé firmado no chão também é o que está mais baixo. No ardor dessa ecclesia militans, que odeia a doutrina por amor ao ainda irrevelado, e afasta a lei e a tradição em nome de um exigente amor pela sua própria formulação, o Diabo voltaria ao seu Deus, ou, falando com mais simplicidade, a verdade voltaria a ser irmã da virtude, e não precisaria mais executar para com aquelas dissimuladas maldades que uma sobrinha jovem faz contra a tia solteirona.

Tudo isso, mais ou menos conscientemente, um jovem registra nas salas de aula do saber; e descobre também os elementos de uma grande mentalidade sintética que junta brincando coisas distantes como uma pedra que cai e uma estrela que gira, e separa algo aparentemente uno e indivisível, como o nascer de um simples ato na consciência, em torrentes cujas fontes remotas estão separadas entre si por milhares de anos. Mas se alguém pretendesse utilizar essa mentalidade sintética fora dos limites das tarefas especializadas, em breve perceberia que a vida tem necessidades diferentes das do pensamento. Na vida acontece o contrário de quase tudo o que é familiar ao pensamento culto. As diferenças e semelhanlas naturais são muito valorizadas aqui; o vigente, seja como for, é considerado até certo ponto natural, e não se gosta de tocar nele; as modificações necessárias só se realizam com hesitação, num processo de avanços e recuos. E se por tendências vegetarianas alguém chamasse uma vaca de "a senhora" (avaliando bem o fato de ser muito mais fácil maltratar alguém a quem chamamos de "você"), nós diríamos que é um gozador ou maluco; mas não por ser amigo de animais ou vegetariano, o que julgamos muito humano, e sim por estar aplicando concretamente essas duas coisas. Em suma, entre intelecto e vida há um acordo complexo, no qual o intelecto recebe pouquíssimo do que exigiria, mas em compensação fica com o título de credor honorário.

Mas se o espírito, na poderosa configuração que acabamos de imaginar é um santo bem viril, com defeitos secundários de guerreiro e caçador, deve-se deduzir das circunstâncias descritas que suas tendências pecaminosas não conseguem se expressar inteiramente, nem ele encontra ocasião de se purificar na realidade, e que por isso pode ser encontrado por toda a sorte de caminhos estranhos e incontroláveis, fugindo às suas estéreis prisões. Resta saber se até aqui tudo foi um jogo de ilusões ou não, mas não se pode negar que a última suposição se confirma. Há uma vida anônima correndo no sangue de muita gente hoje em dia, uma consciência do mal, uma inclinação para o tumulto, uma desconfiança contra tudo o que é respeitado. Há pessoas que se queicam de falta de idealismo na juventude, mas no momento em que precisam agir, agem como alguém que, desconfiando de uma idéia, reforça o débil poder persuasivo dela com uso de um porrete.

Em outras palavras: existirá algum objetivo piedoso que não se precise munir de um pouquinho de corrupção e cálculo, vindos das mais baixas qualidades humanas, para que o levem à sério neste mundo? Palavras como amarrar, forçar, encostar na parede, botar para quebrar, método de força têm um agradável tom de confiabilidade. Idéias como a de que o mais nobre dos espíritos, metidos numa caserna, em oito dias aprende a saltar sob as ordens de um sargento, ou de que um tenente e dez homens bastam para prender qualquer parlamento do mundo, só mais tarde encontraram sua expressão clássica, quando se descobriu que com algumas colheres de óleo de rícino dadas a um idealista se expõem ao ridículo as mais inabaláveis convicções; mas já há muito, embora rejeitadas com indignação, tinham o selvagem impulso de sonhos sombrios. Acontece que pelo menos o segundo pensamento de toda pessoa colocada diante de um fenômeno arrebatador, ainda que a arrebate pela beleza, é hoje me dia: você não me engana, darei um jeito em você! E essa fúria de rebaixamento de uma época não apenas enlouquecida mas enlouquecedora, já não é praticamanete aquela divisão, natural na vida, entre bela e fera, mas antes um traço de autoflagelo do espírito, um indizível prazer no espetáculo que é ver o bem rebaixando-se, e deixando-se destruir com espantosa facilidade. Não é muito diferente do que um apaixonado apanhar-se-a-si-mesmo-mentindo, e talvez não seja a coisa mais desoladora de todas acreditar num tempo que nasceu ao contrário, e apenas precisa que as mãos do Criador o virem.

Portando, um sorriso de homem há de expressar muitas coisas dessa natureza, embora isso escape à auto-observação, ou nunca tenha sido consciente; e era assim o sorriso com que a maioria dos famosos especialistas convidadeos se submetia aos louvávies anseios de Diotima

MUSIL, Robert. "O dissimulado sorriso da ciência, ou Primeiro contato detalhado com o mal". O HOMEM SEM QUALIDADES. Página 217-221. Tradução de Lya Luft. Editora Nova Fronteira. 1978.

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