Monday, June 04, 2007


O Símbolo do Caminho - Bruno Snell

Já que o espírito se formou na história, não é possível espírito sem tradição: só na tradição e em confronto com a tradição pode ele desenvolver-se. Por outro lado, existem tradições sem espírito, tradições das quais o espírito desapareceu, invólucros vazios, semelhantes a cascas de insetos mortos, a conchas que já não hospedam nenhum ser vivo: a tradição está mesmo sempre em risco de tornar-se sem espírito, rígida e morta. Mas essa tradição envelhecida não é somente um fardo que tem de ser arrastado a duras penas, mas – o que é ainda pior – é encarada por aqueles que se sentem vivos como inadequada, como uma mentira.

É condição da história viva do espírito, portanto que as velhas formas sempre retomem nova vida e se transformem, em seguida, em si mesmas. Nisso a vida espiritual assemelha-se à vida tout court, pois também na natureza a vida se perpetua em formas sempre novas. Há todavia uma diferença essencial entre a vida orgânica da natureza e a que chamamos de vida espiritual. Nas plantas e nos animais, as formas vivas só podem surgir através da geração; na tradição espiritual, ao contrário, formas tradicionais ganham nova vida quando refletimos sobre elas. Formas das quais se conservou a memória podem ser, por assim dizer, reanimadas, ao passo que na natureza o que está morto está morto irrevogavelmente. Mais singular e significativo ainda é que velhas formas podem ganhar um novo sentido, e assim instituições, fórmulas, símbolos possam ser, no desenrolar da história, portadores de um sentido e de uma vida múltiplos. Poder-se-ia facilmente dar exemplos extraídos dos campos mais díspares da vida humana, das convenções sociais ou das normas do ordenamento político, das usanças religiosas ou da arte figurativa: por toda a parte oferece-se um mesmo e fascinante espetáculo, de como as velhas tradições são em parte conservadas, em parte abandonadas, em parte reanimadas de um novo espírito. Esse espetáculo nos é familiar a partir de nosso tempo, quando, certamente, nem sempre aparece de forma atraente, mas antes como uma disputa áspera e perversa de opiniões, em que uns, os partidários da tradição, dão-se o nome de conservadores mas são chamados de reacionários pelos adversários, enquanto os outros, que se põe a serviço do espírito novo e estão prontos a lançar ao mar, como um lastro pesado, grande parte da tradição, são considerados por seus adversários como subversivos e destruidores. Somos avessos a detectar nesse conflito, uma luta de partidos e de classes sociais (os beati possidentes seriam de preferência conservadores e os pobres, revolucionários), ou então um contraste de gerações (a juventude é mais atraída pelas novidades do que a velhice), difundindo-se, assim, a convicção de que o conservadorismo ou o reformismo sejam uma espécie de ideologia, de visão do mundo, como se se tratasse de dogmas aos quais aderir ou que devam ser combatidos quando basta refletirmos a respeito para ver que a questão é muito mais simples, ou seja, é ver se uma determinada tradição ainda tem significado ou se já está vazia, se em um determinado campo manifesta-se, ou não, um novo espírito vivo.

Certamente, mesmo que não se assuma, em relação a esses problemas, uma postura ideológica, mas positiva, as opiniões serão, de qualquer modo, muito diferentes; pois um julgará como herança morta aquilo que para outro ainda tem valor; uns celebrarão o nascimento de um novo espírito onde outros vêem apenas decadência e degeneração espiritual, visto que nunca se pode saber, a priori , se o novo é espírito ou negação do espírito, se por trás da máscara do otimista por acaso não se esconde Mefistófeles. Todas as épocas têm essas lutas pela frente, em todos os campos: isso pertence inelutavelmente à nossa existência histórica. Uma destruição leviana pode, portanto, ser tão deletéria quanto uma conservação obtusa.

Neste ensaio ocupar-nos-emos do problema da tradição na história do espírito apenas como problema histórico, como problema do passado, que podemos considerar mais desapaixonadamente, embora, graças à sua atualidade intrínseca, suscite em nós um interesse particularmente vivo. Aqui a história do espírito deve ser entendida em sentido rigoroso e limitado, como história da consciência que o homem tem de si mesmo. Essa autoconsciência do homem explicita-se em determinados símbolos. Basta lembrar o que Aby Warburg chamou de as “fórmulas dos páthos” na arte figurativa. O homem adquire consciência dos próprios movimentos espirituais na medida em que os traduz em imagens e, com a representação desses movimentos interiores, o artista ensina também aos outros homens a percebê-los em si mesmos. Quando, por exemplo, o apaixonado gesto de lamento dos lềkythoi da Grécia arcaica é substituído por uma representação mais composta da dor nos vasos e nos relevos fúnebres da idade clássica, essas obras posteriores ensinam, literalmente, uma forma mais contida e interior de sentir. Uma determinada fórmula da tradição é superada por um novo espírito, que cria para si uma nova fórmula, e essas fórmulas determinam as atitudes externas e interiores do homem de maneira muito mais marcante do que comumente se admite – até o momento em que essas fórmulas se tornam vazias e inadequadas, dando novamente lugar a outras. Essas fórmulas podem ser mal interpretadas e não compreendidas ou perder todo e qualquer significado, mas também podem, após terem permanecido por muito tempo mudas e esquecidas, ressurgir de improviso para uma nova vida: assim no Renascimento certas atitudes clássicas voltam de novo a falar, são novamente acolhidas pela arte figurativa e de novo influenciam os homens.

Quero aqui tratar de um símbolo ao qual várias vezes recorreram os homens para esclarecer a si mesmos o próprio pensamento, símbolo simples e antiquíssimo que criou repetidamente uma nova tradição de pensamento e, de cada vez, se enriqueceu de um novo espírito – o símbolo do caminho, que nos permitirá ilustrar certas características da tradição, e da sua transformação no curso da história do espírito. Para tal fim, utilizarei as pesquisas de dois estudiosos para os quais vai toda a minha gratidão: O livro de Otfried Becker, Das Bild des Weges und verwandte Vorstellungen im frühgriechischen Denken (Hermes-Eizelschriften, fasc.4, 1937) e o estudo de Erwin Panofsky, Herkules am Scheidewege (Studien der Bibl.Warburg, vol.XVIII, 1930).

Para nós, modernos, a imagem do caminho está muito consumida; já não nos damos conta de que a evocamos ao dizer, por exemplo, que levamos a termo um trabalho ou que uma coisa vai bem, quando falamos de rumos da vida ou de andamento do discurso, ou quando dizemos estar atrás de um pensamento. No entanto, todas essas metáforas não existiram desde sempre, mas formaram-se historicamente, e podemos, por exemplo, seguir amplamente sua formação no grego. Elas constituem, portanto, uma verdadeira tradição, mas uma tradição na qual estamos de tal maneira imersos que somos avessos a considerá-la como algo de eternamente válido. A metáfora do caminho toda vez que se apresenta, dá uma determinada interpretação de uma atividade ou de um “processo”, interpretação sobre a qual caberia perguntar se seria a única possível, e até mesmo se seria a correta (admitindo-se que seja lícito falar, no caso, de interpretação correta ou pertinente). Essa metáfora do caminho limita-se, antes de mais nada, a estabelecer um ponto de partida e uma meta para uma determinada atividade e a considerá-la como algo de contínuo em seu percurso do princípio ao fim. Quando falamos do caminho que toma um trabalho ou um discurso, tudo é muito simples e pouco problemático; e é justamente esse o motivo pelo qual é tão sólida a tradição dessas metáforas e por que essas imagens são encontradas nas línguas mais diversas.

Mas já nesse ponto surgem dificuldades: um caminho é, em geral, algo de fixo. É uma exceção, por exemplo, que eu me encontre diante de uma correnteza tendo de buscar um caminho para atravessá-la. Mas num trabalho ou num discurso não é raro que eu tenha primeiramente de encontrar ou mesmo criar o caminho. Mas também pode acontecer que dois pontos entre os quais se trafega não estejam unidos por um único caminho, mas por dois ou mais, e que me cumpra refletir sobre qual deles em convém percorrer: e em idêntica situação posso encontrar-me no caminho de um trabalho ou de um discurso. Mas o fato de ter de buscar um caminho ou de avistar diante de si dois caminhos é uma circunstância que ocorre ao homem sobretudo no ato do pensar.

Este pensamento que se sente colocado ante a tarefa de buscar o próprio caminho ou de escolher entre dois caminhos é coisa relativamente recente. Entre todas as palavras que se relacionam com a metáfora do caminho, duas há, sobretudo nas quais se desenvolveu, entre os gregos, a consciência dessa situação do pensamento: as palavras aporía(isto é, impossibilidade de seguir adiante) e tríodos (trívio ou bifurcação); com elas superou-se uma velha tradição do pensamento e fundou-se uma nova; elas demonstram, de um modo que definiríamos até mesmo como exemplar, a maneira pela qual o espírito supera uma tradição antiquíssima e cria uma nova que se projeta longe no futuro.

Isso tudo não aconteceu, com certeza, do dia para a noite. Os primeiros poetas gregos acreditavam ser guiados pela Musa ao longo do caminho do seu dizer e pensar, e isso pressupõe, evidentemente, que exista um determinado caminho, conhecido pelo menos pela Musa; só com Xenófanes ouvimos pela primeira vez dizer, por volta de 500 a.C., que os homens encontram pouco a pouco o melhor através das próprias indagações e pesquisas (cf. infra, p.139) e é apenas com Sócrates, cem anos mais tarde, que a aporía, a falta de um caminho de saída, é a situação na qual toma impulso o pensamento humano, buscando antes de mais nada achar esse caminho. Aporia passa então a assumir, sem mais, o significado de problema. O caminho do pensamento, que leva para fora dessa situação fechada, é μέφοδος, o método – onde está ainda implícita a imagem do caminho, pois μέφοδος é, propriamente, o caminho em direção a alguma coisa. Platão usa já essa palavra em sentido técnico, e a partir de então toda investigação científica e filosófica tem início com a colocação do problema, da aporia, à qual se segue a pesquisa metódica – segundo o método dialético, ou segundo um outro método científico – do caminho do conhecimento: abandonava-se assim, a velha tradição segundo a qual o homem se sentia guiado pela divindade ao longo de um caminho seguro, e fundava-se a nova tradição da pesquisa científica. Seria muito interessante reconstruir esse desenvolvimento através da transformação gradativa do significado do símbolo do caminho, não quero entretanto, por ora, aprofundar-me nessa análise, preferindo examinar a imagem da encruzilhada, que, a meu ver, apresenta um particular interesse para nossa situação atual.

O símbolo do bívio é nosso velho conhecido através da história de Héracles que é posto diante da escolha de seguir o caminho do vício ou o da virtude. Essa história foi inventada pelo sofista Pródico, contemporâneo de Sócrates, e relatada pelo discípulo de Sócrates, Xenofonte, no segundo livro dos Memorabili (1). Seu conteúdo é mais ou menos o seguinte: o jovem Héracles está em aporia, em dúvida quanto ao “caminho de vida” que deva seguir. E eis que se lhe apresentam duas mulheres de alta estatura, uma cheia de dignidade, formas nobres, vestida de branco – é a ‘Aρεζή, a virtude; a outra, que seus amigos chama de Ε√δαψονία, felicidade, mas os inimigos do Kακία, baixeza – indolente e opina; para parecer mais bela, recorreu a cosméticos e outros meios, contempla futilmente a própria sombra e usa vestes transparentes que deveriam perturbar os sentidos. Ambas dirigem a Héracles um longo discurso, prometendo conduzi-lo à felicidade e Héracles por fim, decide seguir a virtude. A história pouco tem de poética mas seu conteúdo moral tornou-a uma das histórias preferidas na antigüidade, conferindo-lhe, assim, como mostraremos, uma grande importância para a tradição ética ocidental.

A história não faz parte da velha lenda de Héracles e foi inventada como dissemos, por Pródico; mas Pródico utilizou temas mais antigos e por isso essa história não constitui apenas o início de uma tradição mas também se vincula a tradições mais antigas e é, portanto, capaz de mostrar como antigas tradições ganham um novo espírito. Pródico combinou sobretudo dois temas literários: a representação do julgamento de Páris, numa tragédia de Sófocles que foi perdida, e o discurso de Hesíodo ao irmão sobre os dois caminhos que levam, respectivamente, ao bem e ao mal. É um exemplo decididamente típico de como um novo conteúdo surge do encontro de dois temas diferentes. Daí porque julgamos valer a pena determo-nos um pouco mais sobre o assunto. Também Hesíodo fala da άρεζή e da κακία ( e até mesmo da κακόζης), mas essas palavras, nele, não têm aquele significado rigorosamente moral que têm em Pródico.

Diz ele (Erga, 287 e ss.): Da baixeza (κακόζης) podemos pegar tudo o que quisermos, e sem esforço: o caminho é plano e próximo de nós. Mas diante de κακία os imortais colocaram o suor: longa, árdua é a trilha que até ela conduz e, no primeiro trecho, coberto de pedras. Mas tão logo atingimos o cume, ela (a άρεζή) fica mais fácil, embora difícil seja.

Foi daí que Pródico tirou os dois caminhos, o da άρεζή e o da κακία. Como fica, porém, ainda mais claro pelo contexto – e como podemos ver também na passagem citada - , para Hesíodo a άρεζή é ainda a prosperidade e a operosidade, mais do que a virtude, e a κακία não é tanto o mal moral quanto a miséria, o que corresponde também ao uso lingüístico do grego mais antigo. Hesíodo não se refere tanto à consciência moral – e de fato, não fala, de maneira alguma, de uma escolha do bem –, mas aponta o caminho da salvação e o da ruína: embora o caminho da salvação pareça, no início, cansativo e difícil, “no cimo” brilha a felicidade – a κακόζης ao contrário, é fácil de alcançar. A imagem dos dois caminhos já se encontra, por outro lado, em outra antiga tradição: o caminho da luz e o das trevas, o caminho da morte e o da vida, a porta estreita que conduz à bem-aventurança e a porta larga que leva à danação, são imagens que nos são familiares desde a Bíblia; já em Jeremias, 21, 8, lê-se: “Assim disse o Senhor: Eis que vou colocar diante de vós o caminho da vida e o caminho da morte”(2).

Hesíodo, porém, distingue-se dessas solenes declarações que prometem o caminho da salvação ou o da danação na medida em que não fala em nome de uma revelação religiosa, mas refere-se à experiência, com a linguagem áspera e essencial do campesino, e procura convencer o irmão, a quem se dirige seu discurso, de que o caminho da ‘Aρεζή da prosperidade e da felicidade é também o do árduo trabalho, ao passo que o fácil caminho da preguiça conduz à ruína. Na medida em que não se trata aqui de uma livre decisão de Perses, Hesíodo fala exatamente como um pregador que está seguro da verdade que anuncia, ainda que a motive de maneira diversa.

O tema da escolha decisiva é concretizado por Pródico na imagem de Héracles, de quem se aproximam duas criaturas super-humanas – exatamente a ‘Aρεζή e a Kακία, fazendo cada uma delas valer os próprios direitos, pelo que deve ele decidir entre as duas com base unicamente no próprio julgamento. Pródico encontrava situação semelhante no drama satírico (perdido) de Sófocles intitulado Crísis, isto é, Decisão, Juízo. Nessa obra, Sófocles encenava o julgamento de Páris, e Afrodite, segundo conta Ateneu (687 C: fr.361 P. = 334 N.), era aí representada como uma ήδονιĸή (3) δαίμων, como uma “deusa do prazer”, que se arrebicava e a todo instante se olhava ao espelho, enquanto Atena, afeita aos esporte e com o corpo untado de óleo, representava a inteligência e a reflexão racional. Dessa maneira, e do fato que Ateneu declara explicitamente que Pródico construi sua história tendo como modelo esse drama de Sófocles, podemos deduzir que Páris, ao atribuir o prêmio à mais bela, fazia, com isso, a escolha de sua própria vida: ao dar a maçã de ouro a Afrodite, decidia-se por uma vida afrodisíaca e ganhava Helena. Possivelmente também Hera comparecia nesse drama sofocliano, visto que nas outras verões do mito, três são as deusas que disputam diante de Páris o prêmio da beleza, e Páris via-se assim tendo de escolher entre o poder, a sabedoria e o prazer; mas a tradição não permite que se forme uma opinião segura quanto a esse ponto. O fato de as deusas terem-se dirigido a Páris num embate de discursos leva-nos a pressupor aqui, pela primeira vez, a ocorrência daquela disputa oratória que mais tarde se chamará sýnkisis e que recorria ao juízo e à decisão do ouvinte.

Também em Sófocles existem dois temas diversos que concorrem para formar um novo enredo: o primeiro é a história do julgamento de Páris, tal como já é pressuposta pela Ilíada(conforme demonstrou de modo convincente Karl Reinhard); o outro deriva da tragédia de Ésquilo. Na velha lenda do julgamento de Páris narrava-se que as três deusas, Hera, Atena e Afrodite chegaram a brigar entre si porque cada uma afirmava ser a mais bela. Sófocles utilizou provavelmente a versão do conto que encontrou no poema Kypriaká (Cantos Cíprios) . Mas visto que também desse poema pouca coisa nos restou – apenas um breve sumário e alguns fragmentos - , nada podemos afirmar com precisão; parece, todavia, que nos Cantos Cíprios falava-se apenas de uma recompensa, que cada uma das deusas prometia a Páris se este lhe desse o prêmio da beleza; Hera prometia-lhe um reino poderoso, Atena, vitória na guerra, Afrodite, a mulher mais bela. Promessas que mais caracterizam uma influência exercida sobre o juiz, para não dizer corrupção, do que colocam Páris diante da escolha decisiva de um certo tipo de vida e de um determinado caminho. Esse tema, que Sófocles introduz evidentemente na lenda pela primeira vez, provém da primeira tragédia ática. Pois só a Ésquilo, precursor de Sófocles, coube descobrir e demonstrar que o homem não reage apenas a estímulos externos mas é capaz de decidir sozinho. Só com Ésquilo é que o homem tem consciência de chegar, através de sua própria reflexão, a um agir responsável, e só assim surge a idéia da liberdade humana e da autonomia do agir. Ésquilo representou essa nova situação colocando um homem diante de duas instâncias divinas contraditórias; seu Orestes, por exemplo, deve obedecer à ordem de Apolo de vingar a morte do pai, isto é, de matar a mãe – e assim transgride o mandamento divino de honrar a mãe. É, portanto, obrigado, visto que os imperativos divinos se elidem reciprocamente e falham em sua tarefa, a decidir sozinho.

Também Sófocles funde em seguida, na história do julgamento de Páris, duas diferentes tradições, criando assim uma nova tradição, assim como Pródico, por sua vez, combinará os dois temas de Hesíodo e de Sófocles, ou como já Hesíodo havia sobreposto a um tema religioso um tema dessumido da experiência, à velha imagem religiosa dos dois caminhos as regras prosaicas do camponês. Disso tudo resulta – e teríamos muitos outros exemplos para confirmá-lo – que na história do espírito a tradição pode ser ao mesmo tempo conservada e desenvolvida na medida em que duas tradições diversas se encontram e se interpenetram.

O espírito vivo não aparece aqui, portanto, como fantasia desatada – embora se possa considerar uma característica do espírito sua abertura a todas as possibilidades - , mas esse livre espírito permanece ligado de modo peculiar, a dados modelos, temas ou símbolos. O que nada tem de estranho: toda tradição, toda forma significante é, como forma estável e fixa, unilateral, dá ao espírito, àquilo que vive, uma marca e uma configuração determinada, e, se é verdade que a vida só e sempre se pode representar sob essas formas limitadas e só dentro de tais limites podemos nós captar o espírito, aquele que sente a vida como algo de incondicionado sempre adverte, de cada vez, a insuficiência de tais formas; elas parecem-lhe rígidas a isso faz sair em busca de possibilidades novas a fim de superar as velhas formas sentidas como unilaterais e insuficientes. Mas mesmo essas outras possibilidades são dadas à consciência apenas como possibilidades determinadas, exatamente como tradição, tema ou símbolo, e assim um novo conteúdo se deixa exprimir mais facilmente através do entrelaçamento e da mescla de temas diversos.

Conservar a tradição e criar o novo não são, portanto, evidentemente, alternativas que se excluem reciprocamente, mas é justamente numa tradição rica e vital que temas diferentes podem entrelaçar-se e fecundar-se mutuamente. Esse entrelaçamento de temas é de extrema importância para a estrutura de nosso mundo espiritual e pode ser encontrado, também na estrutura da linguagem, por exemplo.

A imagem de Héracles na encruzilhada teve longa vida no ocidente. Na história de Pródico, tal como vem relatada pelas Memoráveis de Xenofonte, diz-se, porém, que Héracles estava em dúvida sobre o caminho de sua vida, mas a palavra τρίοδος, trívio ou bívio, ainda não comparece. Bastaria, porém, um pequeno passo para transportar Héracles, por assim dizer, para a paisagem descrita por Hesíodo, e colocá-lo na ramificação das duas estradas que levavam respectivamente à virtude e ao vício. A mesma situação encontramos em muitos escritores, especialmente em retóricos do início da era cristã, sem que se possa dizer quem tenha sido o primeiro a introduzi-la. Mesmo em outros lugares encontram-se numerosas variantes da história que nada trazem de substancialmente novo.

Já a história de Pródico surgiu uma época em que a fantasia poética dos gregos perdera muito de sua vivacidade, tornando-se, assim, ela também, uma fábula moralista sobremaneira árida. Continuava, apesar disso, capaz de manter desperta e de reforçar a consciência de que o homem tem liberdade de escolha entre o bem e o mal, e isso bem depressa se tornou – depois que surgira na tragédia a consciência da própria responsabilidade e livre decisão, Sócrates, sob a influência da tragédia, fundara toda a moral na liberdade do querer – também o fundamento de uma educação moral generalizada. O desenvolvimento intenso e fecundo da tradição, que até agora acompanhamos, ocorrerá doravante nas discussões filosóficas sobre o valor dos diferentes itinerários de vida e, se já as Memoráveis de Xenofonte, que nos transmitem a fábula de Pródico, têm o caráter de uma filosofia popular para um público bastante vasto, a tradição do tema do bívio sobreviveu no âmbito de uma literatura pedagógica edificante, onde se enrijeceu num tema convencional. Enrijeceu-se mesmo, a tal ponto e de tal maneira perdeu seu conteúdo intuitivo e vital que, a partir do século I d.C. a imagem do bívio cristalizou-se num bizarro esquema abstrato. Viu-se na letra Y a imagem da bifurcação e atribuiu-se ao velho filósofo Pitágoras a introdução desse Y como símbolo da escolha entre o vício e a virtude (4). O segmento vertical significa então, por exemplo, os anos de juventude em que o homem ainda não é capaz de decidir. Esse Y pitagórico vagueia como um fantasma por toda a tardia antigüidade, e até mesmo através da literatura medieval. E foi assim que aquele tema vivo acabou por transformar-se, de todo, numa tradição morta.

E no entanto nem por isso o tema morreu definitivamente – e também esse fato ensina-nos algo graças à tradição.

A imagem do bívio e símbolo do Y pitagórico perdera, no fim da antigüidade e na Idade Média, toda a sua vitalidade porque já não mais se compreendia o verdadeiro significado do tema, porque não mais se sentia a liberdade do homem como algo de essencial. Já na idade helenística começara a afirmar-se o movimento contrário pelo qual o homem se sente novamente, e cada vez mais, determinado pela intervenção de potências divinas e demoníacas. Assim também o Y pitagórico se torna, mais tarde, o símbolo não da escolha ante a bifurcação, mas dos dois caminhos rumo à salvação ou à danação, aos quais o homem é conduzido por um deus ou por um diabo. Figuras medievais, em que o homem é agarrado de um lado por um anjo, de outro por um diabo, procurando, cada um arrastá-lo para si, mostram de forma drástica como então nos são representados os temas que conduzem o homem para o caminho da virtude ou para o do vício.

Panofsky mostrou que só no início do Renascimento o tema de Héracles diante do bívio começa a readquirir um significado essencial: por volta de 1400, reaparece na literatura e, após a metade do século XV, na arte figurativa, onde permanece vivo, numa grande riqueza de variantes, até o século XVIII.

O ressurgir de um tema antigo no Renascimento (e este é apenas um exemplo entre outros muitos) difere do entrelaçamento e fusão de temas de que falamos anteriormente. Ali tínhamos temas ainda vivos que adquiriam uma nova figura e uma nova vida na medida em que se integravam e fecundavam reciprocamente; aqui, ao contrário, um tema velho e fossilizado é retomado depois de um longe esquecimento e despertado para uma nova vida. O exemplo do bívio mostra, com particular evidência, no que consiste esse “ressurgir”. Algo que, a partir do início do século V a.C., dos primórdios da tragédia ática, isto é, da idade clássica, era considerado como essencial para o homem, ou seja, que o homem pode e deve escolher entre o bem e o mal, é, na Idade Média, esquecido ou de qualquer modo coberto e escondido por uma outra interpretação do agir humano.

“Renascimento” é o nome que damos a esse grande repensamento de uma tradição esquecida e perdida. Esses renascimentos dependem do fato de que o homem experimenta, ainda mais radicalmente do que fosse ocorrer no desenvolvimento normal de temas tradicionais, um sentido de insatisfação em relação à tradição dominante e fossilizada, de que sua natureza mais íntima não se sente mais realizada pelas formas em que vive e de que, portanto, ele se volta nostalgicamente para o ponto a partir do qual lhe parece que a vida tenha tomado uma direção errada. A infância inocente, a idade de ouro de uma humanidade primitiva, o paraíso antes do pecado original, do fruto proibido do conhecimento, a natureza à qual se deve retornar, são temas antitéticos ao da tradição – e que têm, no entanto, por sua vez, uma longa tradição, dos primórdios da humanidade até hoje.

Para aquilo que chamamos cultura ocidental, para a nossa arte, ciência e política, a antigüidade é o ponto de partida e o ponto de norteamento e, sob esse aspecto, o símbolo do bívio merece ainda duas palavras. É exatamente esse símbolo que ganha hoje certo valor de atualidade. No curso dos últimos cem anos veio novamente para primeiro plano, para a nossa consciência, tudo aquilo que determina coativamente o homem no seu agir e que, portanto, restringe sua possibilidade de decidir livremente. A ação do ambiente, sobretudo das relações econômicas, os influxos secretos a que está exposta a nossa alma, a “exposição” de nossa existência têm uma parte tão importante na consciência do homem moderno, que as tradicionais representações da escolha da virtude aparecem como vazias e mentirosas, como antigualha de mau gosto ou ideologia. E no entanto, fala-se muito e em altas vozes da liberdade do homem. Essa contradição não é necessariamente perigosa: pode tornar-se – desde que não a aceitemos de modo absoluto – um fecundo impulso de renovação.

1.Sobre a história de Pródico, cf. H. Hommel, Würzb, Jahrbe, 4, 1949-1950. Pp.157-165.
2.Cf. também Moisés, 5, 11, 26-28; Provérbios de Salomão, 1, 5, 15 e ss.
3.Segundo a hipótese de U. Von Walamowitz, Hellenische Dichtungl, II, 17.
4.Cf. Axel Friberg, Den Svenske Hekules, Kungl. Vittershets Historie och Antikviets Akademiens Handingar, Del 61: 1, Stokholm, 1945 (com amplos dados bibliograficos).



(SNELL, Bruno. Capítulo 13 – O Símbolo do Caminho. Página 247-256. A Cultura Grega e as Origens do Pensamento Europeu. Editora Perspectiva)

1 comment:

Defensor said...

Salve Blogildo
De novo: obrigado pela força... Estou lendo os Salmos todos os dias. Realmente ajudaram, em conjunto com algumas orações, efetivamente melhoraram as coisa por aqui...

Quanto à este livro, ainda não o conhecia, mas sempre fui fascinado por símbolos. Este capítulo é bem legal. Vou conferir o livro...

Abraços

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