Thursday, May 24, 2007

Perigos da Incoerência - Michael Polanyi


Este capítulo é dedicado à liberdade intelectual. Argumentarei que sua doutrina, como a nós repassada é intrinsecamente contraditória, e que a queda da liberdade no continente da Europa foi um resultado dessa inadequação. A liberdade de pensamento destruiu-se a si própria quando uma concepção autocontraditória de liberdade foi defendida até as últimas conseqüências.

Para apresentar essa argumentação, tenho que relancear o olhar, ainda que muito rapidamente, para o exato início da reflexão sistemática. O pensamento moderno, no mais amplo sentido, emergiu com a emancipação da mente humana da interpretação mitológica e mágica do Universo. Sabemos quando, onde e por meio de que método aconteceu pela primeira vez. Tal ato de liberação se deveu aos filósofos jônicos que floresceram no século VI a.C. Eles foram sucedidos por outros filósofos gregos que cobriram um período de mil anos. Esses pensadores antigos desfrutavam de muita liberdade de especulação sem nunca levantar decisivamente a questão da liberdade intelectual.

Santo Agostinho pôs fim ao milênio da filosofia antiga. Segui-se o longo período de manda da ideologia cristã e da Igreja de Roma sobre todos os aspectos do pensamento. O domínio da autoridade eclesiástica começou a ser barrado a partir do século XII por diversas e esporádicas conquistas intelectuais. Então, com o desabrochar da Renascença italiana, os artistas e pensadores que lideraram o movimento fizeram com que a religião fosse levada cada vez mais ao esquecimento. A própria Igreja italiana pareceu ceder aos novos interesses seculares. Se toda a Europa daquele tempo tivesse a mesma mentalidade da Itália, o Humanismo Renascentista poderia ter estabelecido a liberdade de pensamento por todos os lugares, simplesmente pela ausência de oposição. A Europa poderia ter retornado – ou, caso se prefira, recaído – ao liberalismo semelhante ao da antiguidade pré-cristã. O que quer que viesse depois, nossos problemas presentes não teriam ocorrido.

Todavia, em vez disso, surgiu em diversos países europeus – Alemanha, Suíça, Espanha – um revigoramento do fervor religioso, acompanhado do cisma da Igreja Católica, que iria dominar as mentes das pessoas por cerca de dois séculos. A Igreja Católica, rapidamente, reafirmou sua autoridade sobre toda a esfera intelectual. Os pensamentos dos homens foram influenciados e as políticas tomaram forma em presença da luta entre o catolicismo e o protestantismo, para a qual todas as questões contemporâneas contribuíram ao se aliarem a um ou outro lado.

Pelo início do século atual – para o qual conduzo agora o assunto – a guerra entre católicos e protestantes já tinha terminado havia muito tempo; entretanto, a formulação do pensamento liberal ainda permanecia em grande parte determinada pela reação das gerações passadas contra o período de guerras religiosas. Para começar, o liberalismo foi motivado pela repulsa ao fanatismo religioso; ele apelou à razão para a cessação da rixa que ocorria. O desejo de refrear a violência religiosa impulsionou o liberalismo, tanto o anglo-americano como o do continente europeu. Mesmo assim, o começo da reação contra o fanatismo religioso diferiu um pouco nessas duas áreas, e tal diferença vem se acentuando com o tempo, de modo que, em conseqüência, a liberdade foi sustentada no Ocidente até os nossos dias e entrou em colapso nos territórios da Europa Central e Oriental.

O liberalismo anglo-americano foi formulado primeiro por Milton e Locke. Seu argumento para a liberdade de pensamento tem duas partes. Na primeira (para a qual podemos citar o Areopagítica), é demandada a liberdade em relação à autoridade, de forma que a verdade possa ser descoberta. A principal inspiração de tal movimento foi a luta das ciências naturais que emergiam contra a autoridade de Aristóteles. Seu programa era deixar que cada um expressasse suas crenças e permitir que o povo as ouvisse e formasse sua própria opinião; as idéias que prevalecessem numa luta aberta e livre de faculdades e visões seria a melhor aproximação da verdade humanamente alcançável. Podemos denominar tal programa de fórmula antiautoritária de liberdade. Cerradamente relacionada com ela é a segunda parte do argumento pela liberdade, que se baseia na dúvida filosófica. Embora suas origens estejam bem longe (nos filósofos da antiguidade), esse argumento foi formulado pela primeira vez como doutrina política por Locke. Ele afirma, simplesmente, que jamais podemos estar seguros da verdade em questões de religião para que possamos impor nossa opinião sobre os outros. Esses dois pleitos pela liberdade foram apresentados na Inglaterra, e lá aceitos, numa ocasião em que as crenças religiosas eram inabaláveis e, na verdade, dominantes em toda a nação. A nova tolerância objetivava primordialmente a reconciliação das diferentes denominações a serviço de Deus. Locke recusou tolerância aos ateus por considerá-los socialmente inconfiáveis.

No continente europeu, a doutrina de duas partes para o livre pensamento – antiautoritarismo e dúvida filosófica – ganhou ascendência um pouco mais tarde que na Inglaterra e caminhou diretamente para uma posição mais extremada. Isso foi efetivamente formulado pela primeira vez no século XVIII pela filosofia do Iluminismo, que era, principalmente, um ataque à autoridade religiosa e, em particular, à Igreja Católica. Ela professava um ceticismo radical. Os livros de Voltaire e dos enciclopedistas franceses que expuseram a doutrina foram muito lidos na França, enquanto suas idéias no exterior se espalharam pela Alemanha e chegaram bem longe na Europa Oriental. Frederico, o Grande, e Catarina da Rússia estavam entre seus correspondentes e discípulos. O tipo de aristocrata voltairiano, representado pelo velho príncipe Bolkonski em Guerra e Paz, era encontrado nas cortes e nas residências feudais da Europa Continental, no final do século XVIII. A profundidade da influência dos filósofos sobre o pensamento político de seu próprio país iria se revelar na Revolução Francesa.

O estado de espírito do Iluminismo francês, conquanto muitas vezes raivoso, foi sempre muito confiante. Seus seguidores prometeram livrar a humanidade de todas as suas mazelas sociais. Uma das figuras centrais do movimento, o barão d’Holnach, expressou assim tal posição no seu Systeme de la Nature (1770):

O homem é miserável simplesmente porque é ignorante. Sua mente está tão infectada de preconceitos que se pode pensar que ele está condenado para sempre ao erro(...). É o erro evocado pelos medos religiosos, que apequena os homens pelo terror ou faz com que se matem uns aos outros por quimeras. Os ódios, as perseguições, os massacres, as tragédias que, sob pretextos de interesses do Céu, têm tido a Terra por palco, são todos, e cada um resultados do erro.

Essa explanação das misérias humanas e o remédio prometido para elas continuaram infundindo confiança na intelligenstsia européia bem depois da Revolução Francesa. Permaneceu um axioma entre as pessoas progressistas do continente europeu que, para se conseguir luz e liberdade, era preciso primeiro quebrar o poder do clero e eliminar a influência do dogma religioso. Batalhas após batalhas foram travadas nessa campanha. Talvez o engajamento mais feroz tenha ocorrido no caso Dreyfus, no apagar do século, com o qual o clericalismo foi finalmente derrotado na França e ainda mais enfraquecido por toda a Europa. Foi mais ou menos nessa época que W.E.H.Lecky escreveu no seu History of Rationalism in Europe (1893): “Em toda a Europa, o clero é agora associado a uma política conservadora [toryism], de reação ou de obstrução. Na Europa, os órgãos que representam interesses dogmáticos se mostram em perene oposição às tendências progressistas que os circundam, e estão rapidamente caindo em desgraça.”

Lembro-me muito bem desse sentimento triunfante. Olhávamos para esses tempos passados como um período de escuridão e, com Lucrécio, bradávamos horrorizados: “Tantum religio potuit suadere malorum”; que males a religião nos inspirou! Assim, rejubilávamo-nos com o conhecimento superior de nossa era e com suas liberdades asseguradas. As promessas de paz e liberdade feitas ao mundo pelo Iluminismo francês foram, na verdade, maravilhosamente concretizadas até o fim do século XIX. Podia-se viajar por toda a Europa e a América sem um passaporte e fincar estacas onde se quisesse. Com a exceção da Rússia, era possível publicar qualquer coisa em toda a Europa sem censura prévia e também possível, com impunidade, a oposição a qualquer governo ou credo. Na Alemanha – muito criticada à época por ser antiautoritária -, caricaturas mordazes do imperador circulavam livremente. Até na Rússia, cujo regime era bastante opressor, O capital de Marx apareceu traduzido, logo depois de sua primeira publicação, e mereceu resenhas bastante favoráveis da imprensa. Em toda a Europa, não mais que algumas centenas de pessoas estavam forçadas ao exílio político. Em todo o planeta, os homens das raças européias viviam em livre comunicação intelectual e pessoal. Não surpreendia, portanto, que o estabelecimento universal da paz e da tolerância, graças a vitória do Iluminismo moderno, fosse confiantemente esperado na virada do século por uma grande maioria do povo culto do continente europeu.

Dessa forma, entramos no século XX como uma era de promessas infinitas. Poucas pessoas entenderam na ocasião que caminhávamos em campo minado – ainda que as minas tivessem sido todas preparadas e cuidadosamente dispostas no terreno à luz do dia e por pensadores bem-conhecidos de nossa época. Hoje sabemos que nossas esperanças eram infundadas. Todos aprendemos a identificar o colapso da liberdade no século XX com os escritos de certos filósofos, notadamente Marx, Nietzsche e seus ancestrais comuns, Fichte e Hegel. Porém, a história ainda irá contar como acolhemos como libertadoras as filosofias que iriam destruir a liberdade.

Já disse que considero o colapso da liberdade na Europa Central e Oriental como resultado de uma contradição interna na doutrina dessa mesma liberdade. Onde está a incoerência? Por que ela destruiu a liberdade em grandes partes do continente europeu e não teve, até agora, efeito similar no Ocidente ou na área anglo-americana de nossa civilização?

O argumento da dúvida apresentado por Locke em favor da tolerância diz que, por ser impossível demonstrar qual religião é a verdadeira, devemos admitir todas. Isso significa que não podemos impor crenças que não são demonstráveis. Apliquemos essa doutrina aos princípios éticos. Segue-se que, a menos que os princípios éticos possam ser demonstrados com certeza, devemos refrear sua imposição e tolerar sua total negação. Porém, é claro que os princípios éticos não podem ser demonstrados: não se pode provar a obrigação de dizer a verdade, de sustentar a justiça e a misericórdia. A conseqüência seria a aceitação de um sistema de falsidade, injustiça e crueldade, como alternativa em termos iguais para os princípios éticos. Mas uma sociedade em que prevalecem a propaganda inescrupulosa, a violência e o terror não dá espaço para a tolerância. Aí está a incoerência de um liberalismo baseado na dúvida filosófica: a liberdade do pensamento é destruída pela extensão da dúvida ao campo dos ideais tradicionais.

A consumação desse processo destrutivo foi evitada na região anglo-americana pela relutância instintiva em aceitar as premissas filosóficas até as últimas conseqüências. Uma forma de contornar o problema foi a suposição de que os princípios éticos que podiam ser, na realidade, cientificamente demonstrados. O próprio Locke deu início a essa linha de raciocínio, asseverando que o bem e o mal podiam ser identificados com prazer e dor, e sugerindo que todos os ideais do bom comportamento eram meras máximas da prudência.

No entanto, o cálculo utilitarista não pode, de fato, demonstrar nossas obrigações para com ideais que demandem sérios sacrifícios de nossa parte. A sinceridade de um homem ao professar seus ideais tem que ser medida, ao contrário, pela falta de prudência que ele demonstra ao persegui-los. A confirmação utilitarista da magnanimidade nada mais é do que uma veleidade, pela qual os ideais tradicionais se tornam aceitáveis por uma era filosoficamente cética. Camuflados por um egoísmo de longo prazo, os ideais tradicionais do homem são protegidos da destruição pelo ceticismo.

Creio que a preservação, até os nossos dias, da civilização ocidental nos moldes da tradição de liberdade anglo-americana se deveu a essa contenção especulativa, que chegou a uma verdadeira suspensão da lógica dentro da filosofia empirista inglesa. Foi suficiente um serviço de propaganda boca a boca sobre a supremacia do princípio do prazer. Os padrões éticos não foram realmente substituídos por novos propósitos; menos ainda foi a inclinação por abandonar a prática de tais padrões. As massas da população e seus líderes na vida pública puderam, na verdade, desconsiderar a filosofia aceita, tanto na decisão sobre a conduta pessoal como na construção das instituições políticas. Todo o largo avanço das aspirações morais, para as quais a Idade da Razão mostrou o caminho – a Revolução Inglesa, a Revolução Americana, a Revolução Francesa, a primeira libertação de escravos no Império Britânico, as Reformas na Manufatura, a fundação da Liga das Nações, a posição da Inglaterra contra Hitler, a oferta da Lei Empréstimo e Arrendamento (Lend-Lease), o Fundo das Nações Unidas para Assistência e Recuperação (UNRAA – United Nations Relief and Rehabilitation Administration) e o Plano Marshall, o envio de milhões de pacotes de alimentos por americanos para beneficiários desconhecidos na Europa – em todas essas ações decisivas, a opinião pública foi impulsionada por forças morais, pela caridade, por um desejo de justiça e rejeição dos males sociais, sem considerar o fato de que elas não encontravam justificativa na filosofia vigente à época. O utilitarismo e outras formulações materialistas dos ideais tradicionais permanecem no papel. O entrave filosófico nos padrões morais universais levou apenas à sua substituição verbal; foi uma substituição pretextada, ou, para dar-lhe uma designação técnica, podemos falar numa “pseudo-substituição” dos princípios morais por propósitos utilitaristas.

As contenções práticas e especulativas que salvaram o liberalismo da autodestruição na área anglo-americana resultaram em primeiro lugar do caráter distintamente religioso desse liberalismo. Na medida em que a dúvida filosófica fosse aplicada apenas para garantir direitos iguais a todas as religiões e também proibir a demanda desses direitos pela irreligião, a mesma contenção se aplicaria automaticamente no tocante às crenças morais. O ceticismo, que foi mantido em rédea curta pelo bem da preservação das crenças religiosas, dificilmente constituiria uma ameaça aos princípios morais fundamentais. Uma segunda contenção do ceticismo, cerradamente relacionada à primeira, foi o estabelecimento das instituições democráticas quando as crenças religiosas ainda eram fortes. Tais instituições (por exemplo, a Constituição americana) deram conseqüência aos princípios morais que embasam uma sociedade livre. As tradições democráticas incorporadas nessas instituições se mostraram suficientemente fortes para sustentar, na prática, os padrões morais de uma sociedade livre contra qualquer crítica que pudesse questionar suas validades.

As duas contenções protetoras, no entanto, estiveram ausentes naquelas partes da Europa onde o liberalismo se baseou no Iluminismo francês. Tal movimento, por ser anti-religioso, não impôs restrição às especulações céticas; e lá, também, os padrões da moralidade não foram incorporados às instituições democráticas. Quando uma sociedade feudal, dominada pela autoridade religiosa, era atacada por um ceticismo radical, emergia um liberalismo desprotegido, quer por uma religião, quer por tradição cívica, contra a destruição por aquele ceticismo filosófico ao qual o liberalismo devia a sua origem.

Permitam-me descrever o que aconteceu. A partir da metade do século XVIII, o pensamento europeu continental enfrentou o sério fato de que os padrões universais da razão não podiam ser justificados à luz da atitude cética que começara com o movimento racionalista. O grande tumulto filosófico que começou na segunda metade daquele século na Europa continental e que, afinal, levou aos desastres filosóficos de nossos dias representou uma preocupação incessante com o colapso das fundações filosóficas do racionalismo. Devido a má reputação que passaram a ter os padrões universais do comportamento humano, vários substitutos se apresentaram para assumir o lugar deles. Indicarei as principais formas como eles apareceram.

A primeira espécie de padrão substituto derivou da contemplação da individualidade. A característica distinta do indivíduo é colocada como se segue nas palavras de abertura de Confissões , de Rousseau. Ele fala sobre si mesmo: “Apenas eu (...). Não existe ninguém que pareça comigo (...). Devemos ver se a Natureza estava certa ao quebrar o molde no qual me forjou.” A individualidade aqui, estava desafiando o mundo a julgá-la, se pudesse, pelos padrões universais. O gênio criativo alegava ser o renovador de todos os valores e, portanto, ser incomensurável. Tal alegação iria se estender a nações inteiras; segundo ele, cada nação possuía seu conjunto único de valores que não podia ser criticado validamente com base na razão universal. A única obrigação de uma nação era, como a do indivíduo único, avaliar seus próprios poderes. Ao seguir o chamamento de seu destino, ela não poderia permitir que uma outra se interpusesse em seu caminho.

Caso se aplique essa alegação pela supremacia da característica única – que podemos chamar de Romantismo – às pessoas, chega-se a uma aversão generalizada à sociedade, como exemplificada na atitude anticonvencional, quase extraterritorial, da boemia do continente. Se aplicada às nações, resulta, ao contrário, na concepção de um destino nacional único que clama a obediência absoluta de todos os cidadãos. O líder nacional combina as vantagens das duas. Ele pode se quedar arrebatado de admiração por sua própria individualidade, enquanto identifica suas ambições pessoais com o destino da nação, prostrada a seus pés.

O Romantismo foi um movimento literário e uma mudança de opinião, e não uma filosofia. Seu correspondente no pensamento sistemático foi construído pela dialética hegeliana. Hegel assumiu o comando da Razão Universal, definhada, quase um fantasma, pelo tratamento recebido nas mãos de Kant, e vestiu-a com a pele tépida da história. Declarada incompetente para julgar a ação histórica, foi dada à razão a confortável posição de imanente à história. Uma situação ideal: “Cara você perde, coroa ganho eu”. Identificada aos batalhões mais poderosos, a razão tornou-se invencível, porém, infelizmente, também redundante.

O próximo passo foi, portanto, muito natural: o completo rebaixamento da razão. Marx e Engels decidiram fazer a dialética hegeliana acontecer. Não deveria mais haver a ilusão de que o rabo é que sacudia o cão. Os grandes batalhões deveriam ser reconhecidos como feitores da história por direito próprio, sendo a razão mera apologista para justificar as suas conquistas.

A história desse último desenvolvimento é bem conhecida. Marx reinterpretou a história como resultado de conflitos de classes que surgiam da necessidade de ajustar as “relações da produção”. Em linguagem comum, era dito que, se novos equipamentos técnicos se tornavam disponíveis de tempos em tempos, era necessário mudar a ordem da propriedade em favor da nova classe, o que, invariavelmente, era conseguido pela derrubada da classe favorecida até então. O socialismo, dizia-se, dá um fim a essas mudanças violentas pelo estabelecimento da sociedade sem classes. Na sua primeira formulação no Manifesto Comunista, a doutrina coloca as “eternas verdades, tais como Liberdade, Justiça, etc.” – mencionadas nesses termos – numa posição muito duvidosa. Como essas idéias, supostamente, só tinham sido usadas para aplacar a consciência dos mandantes e confundir as suspeitas dos explorados, não havia lugar para elas na sociedade sem classes. Nos dias de hoje, ficou claro que, na realidade, não existe nada no reino das idéias, da lei e da religião à poesia e à ciência, das regras do futebol à composição de música que não possa ser rapidamente interpretado pelos marxistas como simples produto do interesse de classes.

Entrementes, o legado do nacionalismo romântico, que se desenvolvia em linhas paralelas, foi também transposto para termos materialistas. Wagner e o Valhala sem dúvida afetaram o imaginário nazista; Mussolini ufanava-se por ter revivido a Roma Imperial. Mas a idéia realmente efetiva de Hitler e Mussolini era sua classificação das nações entre as que tinham (haves) e as que não tinham (have-nots), no modelo da luta de classes marxista. Nessa visão, as ações das nações não eram determinadas, nem capazes de serem julgadas certas ou erradas. As abastadas pregavam a paz e a santidade das leis internacionais; já que a lei sancionava suas posses. Mas, é claro que esse código era inaceitável pelas nações viris, deixadas de mãos vazias; elas se levantariam e derrubariam as degeneradas democracias capitalistas, que tinham se transformado em meros instrumentos ingênuos de suas ideologias pacíficas, inicialmente destinadas apenas a iludir as não-favorecidas. E assim ia o texto da política externa fascista e dos nacional-socialistas, exatamente nas linhas de um marxismo aplicado à luta de classes entre nações. Com efeito, já nos primórdios do século XX, influentes escritores germânicos tinham remodelado completamente o nacionalismo de Fitche e Hegel para uma interpretação da história com base no poder político. O Romantismo tinha sido brutalizado, e a brutalidade, romantizada, até que seu produto fosse tão obstinado quanto o próprio materialismo histórico de Marx.

Chegamos então ao resultado final do ciclo continental do pensamento. A autodestruição do Liberalismo; aquilo que foi mantido em estado de lógica suspensa no campo anglo-americano da civilização ocidental por aqui foi levado à conclusão definitiva. O processo de substituição dos ideais morais por objetivo filosóficos menos vulneráveis foi consumado com toda a seriedade. Não foi uma pseudo-substituição, mas uma troca real das razões e ideais do homem por apetites e paixões humanos.

Isso nos leva diretamente à cena das revoluções do século XX. Podemos ver agora como as filosofias que guiaram essas revoluções e destruíram a liberdade onde elas prevaleceram forma originalmente justificadas pela fórmula antiautorirária e cética de liberdade. Tais filosofias eram, de fato, antiautoritárias e céticas ao extremo. Elas livraram o homem de obrigações para com a verdade e a justiça, reduzindo a razão a uma caricatura: a mera racionalização de conclusões, predeterminada pelo desejo, e eventualmente a ser garantida, ou já sustentada, pela força. Foi essa a medida final de tal liberação: o homem deveria ser reconhecido, dali por diante, como feitor e mestre, não mais servo daquilo que antes constituíra seus ideais.

Essa liberação, contudo, destruiu as próprias fundações da liberdade. Se pensamento e razão não são nada por si sós, então não faz sentido demandar que o pensamento seja libertado. As esperanças sem limites que o Iluminismo do século XVIII associou à derrubada da autoridade e à perseguição da dúvida eram esperanças vinculadas da liberação da razão. Seus seguidores acreditavam piamente – para usar o majestoso palavreado de Jefferson – em “verdades que são auto-evidentes”, que protegem “a vida, a liberdade e a busca da felicidade”, sob governos “que derivam seus justos poderes do consentimento dos governados”. Eles confiavam nas verdades, que acreditavam estar gravadas nos corações dos homens, para o estabelecimento da paz e da liberdade entre os homens, em todas as partes. A suposição de padrões universais da razão estava implícita nas esperanças do Iluminismo, e as filosofias que negavam a existência de tais padrões negavam, portanto, as fundações de todas essas esperanças.

Mas não basta mostrar como um processo lógico, que teve origem na formulação inadequada da liberdade, levou a conclusões filosóficas que contradisseram a liberdade. Tenho ainda que mostrar que essa contradição foi realmente posta em operação; que essas conclusões não apenas foram acolhidas e consideradas verdadeiras, mas encontraram pessoas resolvidas a agir com base nelas. Se as idéias causam revoluções, só podem fazê-lo por meio da ação de pessoas. Para que meu relato seja satisfatório, tenho que ser capaz de mostrar que existiram aqueles que realmente transformaram o erro filosófico em ação humana catrastrófica.

Sobre essas pessoas, temos ampla evidência documental no seio da intelligentsia da Europa Central e Oriental. Podemos descrevê-las como niilistas.

Existe uma ambigüidade interessante nas conotações da palavra “niilismo”, que a princípio pode parecer confusa, mas acaba sendo elucidativa. Lembremo-nos da interpretação de Rauschning sobre o levante nacional-socialista no seu livro Revolução Germânica do Niilismo. Exatamente com o sentido oposto, relatórios da Europa Central com freqüência falam de niilismo largamente difundido, significando uma falta de espírito público, a apatia do povo que não acredita em nada. Essa curiosa dualidade do niilismo, que o torna exemplo tanto de completo egocentrismo como de violenta ação revolucionária, pode ser acompanhada até suas origens. A palavra foi popularizada por Turgueniev em seu Pais e Filhos, escrito em 1862. Seu protótipo do niilismo, o estudante Bazarov, é um individualista extremado, sem qualquer interesse em política. Como também não demonstra qualquer inclinação política a outra figura bem próxima (1865) da literatura russa, Raskolnikov, personagem de Dostoievski em Crime e Castigo. O que Raskolnikov está tentando descobrir é por que não deve matar uma mulher idosa, se ele deseja o dinheiro dela. Os dois – Bazarov e Raskolnikov – levam uma vida privada de total descrença. Mas, poucos anos mais tarde vamos encontrar os dois niilistas transformados em conspiradores políticos. A organização terrorista dos Narodniki – ou populistas – tinha acabado de nascer. Dostoievski retratou o novo tipo em sua novela posterior, Os Demônios. O niilista aparece agora como um conspirador frio e metódico, prefigurando rigorosamente o ideal bolchevique, como eu o vi retratado no teatro em Moscou numa das peças didáticas dos primeiros anos de Stálin. Nem é acidental a similaridade. Pois todo o código da ação conspirativa – as células, o segredo, a disciplina, a crueldade -, conhecido hoje como método comunista, foi copiado por Lênin dos “populistas”; a prova está nos artigos publicados por ele em 1901.

Os povos inglês e americano acham difícil entender o niilismo porque a maioria das doutrinas professadas pelos niilistas era corrente entre os anglo-americanos por algum tempo sem que os que as sustentavam se tornassem niilistas. O grande e sólido Bentham não teria discordado de qualquer das teorias esposadas do protótipo de niilista de Turgueniev, o estudante Bazarov. Porém, embora Bentham e outros ingleses propensos pudessem usar tal filosofia meramente como uma explanação equivocada de suas próprias condutas, as quais eram na verdade determinadas por crenças tradicionais, o niilista Bazarov e os que se assemelhavam a ele levavam essas filosofias a sério e tentavam viver de acordo com elas.

O niilista que procura conduzir sua vida sem quaisquer crenças, obrigações ou restrições pertence ao primeiro e particular estágio do niilismo. Na Rússia, ele é representado pelo tipo de intelectual descrito à época de Turgueniev e o mais jovem Dostoievski. Na Alemanha, encontramos niilistas assim em grande quantidade por influência de Nietzsche e Stirner; e, mais tarde, entre 1910 e 1930, em linha direta de sucessão veio o grande Movimento da Juventude Germânica, com sua repulsa radical a todos os vínculos sociais existentes.

Entretanto, o niilista solitário é instável. Faminto de responsabilidade social, ele é passível de ser atraído para a política, desde que encontre um movimento baseado nas suposições niilistas. Assim, quando ele passa a se envolver com questões públicas, adota um credo de violência política. Os cafés de Munique, Berlim, Viena, Praga, Budapeste, onde escritores, pintores, advogados, médicos gastaram muitas horas em especulações divertidas e mexericos, transformaram-se em 1918, nos locais de recrutamento dos “boêmios armados”, aos quais Heiden em seu livro sobre Hitler descreve como agentes da Revolução Européia; da mesma forma que o Bloomsbury dos desenfreados anos 20 produziu muitos e disciplinados marxistas, por volta de 1930.

A conversão do niilista do individualismo extremo para o serviço de um credo político estreito e feroz é o ponto de inflexão da Revolução Européia. A queda da liberdade na Europa consistiu em uma série de tais conversões individuais.

Os mecanismos de tal conversão merecem cerrada atenção. Tomemos primeiro a conversão ao marxismo. O materialismo histórico tinha todos os atrativos de um segundo Iluminismo, já que teve origem no primeiro e anti-religioso movimento, deu-lhe prosseguimento e ofereceu a mesma intensa satisfação mental. Aqueles que aceitaram sua orientação sentiram-se como homens de ação e operadores da história; consideraram-se iniciados numa realidade até então oculta para eles e que continuava encoberta para os não-iniciados por um véu de falsidade e auto engano. Marx e todo o movimento materialista do qual era parte tinham-lhes mostrado o mundo, revelando-lhe as verdadeiras molas que impulsionavam o comportamento humano.

O marxismo também lhes oferecia um futuro de promessas ilimitadas para a humanidade. Previa que a necessidade histórica destruiria uma forma antiquada de sociedade e a substituiria por uma nova em que todas as mazelas e injustiças existentes seriam eliminadas. Conquanto tal perspectiva fosse apresentada como observação puramente científica, dotou os que a aceitaram de um sentimento de extraordinária superioridade moral. Eles adquiriram um senso de retidão, o qual, paradoxalmente, foi intensificada de forma furiosa pelo quadro mecânico em que se instalou. Seu niilismo tinha impedido que eles demandassem justiça em nome da justiça, ou humanidade em nome da humanidade; essas palavras tinham sido banidas de seu vocabulário, e suas mentes tinham se fechado para tais conceitos. No entanto, silenciadas e reprimidas, suas aspirações morais encontraram uma saída nas predições científicas de uma sociedade perfeita. Então, estabeleceu-se uma utopia científica que só podia ser concretizada pela violência. O niilista podia aceitar – e abraçava ansiosamente – uma profecia que não exigia de seus discípulos outra crença que não a força dos apetites corporais e que, ao mesmo tempo, satisfazia a maioria de suas expectativas morais extravagantes. Seu senso de retidão ficava, assim, reforçado por uma brutalidade calculada, nascida da auto-afirmação científica. Foi assim que surgiu o fanático moderno, envolto numa carapaça impenetrável de ceticismo.

O poder do marxismo sobre as mentes se baseia num processo exatamente inverso ao da sublimação freudiana. As necessidades morais do homem, aos quais é negada a expressão em termos de ideais humanos, são injetadas num sistema de força pura, à qual elas adicionam o poder de uma paixão moral cega. Embora com uma certa qualificação, isso é também verdade para o atrativo exercido pelo nacional-socialismo sobre as mentes da juventude alemã. Ao oferecer-lhe uma interpretação da história nos termos materialistas da luta internacional de classes, Hitler mobilizou seu senso de dever cívico sem vínculos com ideais humanos. É um erro encarar o nazista como um selvagem não-instruído. Sua bestialidade foi adornada cuidadosamente com especulações que refletiam de forma muito estreita a influência marxista. Sua aversão aos ideais humanitários tinha um século de aprendizado filosófico por trás dela. O nazista não acredita em moralidade pública da mesma forma que não acreditamos em bruxaria. Não que jamais tenha ouvido falar nessa moralidade, mas acha que tem razões válidas para afirmar que ela não pode existir. Caso se afirme o contrário, ele toma quem assim pensa por fora de moda, ou simplesmente desonesto.

Em homens assim, as formas tradicionais de adesão a ideais morais foram destroçadas e suas paixões morais desviadas para os únicos canais que uma concepção estritamente mecanicista do homem e da sociedade deixou aberto a eles. Podemos denominar tal processo de inversão moral. A pessoa moralmente invertida não só realizou uma substituição filosófica dos objetivos morais por propósitos materialistas, mas também age com toda a força de suas paixões morais desabrigadas dentro de uma moldura materialista de finalidades.

Resta-me descrever o real campo de batalha europeu onde foi travado o conflito que resultou na queda da liberdade. Vamos nos aproximar da cena a partir do Ocidente. Quando a Guerra dos Quatro anos se aproximava do final, começamos a ouvir a voz de Wilson, que vinha do outro lado do Atlântico apelando por uma nova Europa em termos de puras idéias do século XVIII. “O que buscamos” sintetizou ele na sua declaração de 4 de julho de 1918, “é o reino da lei, com base no consentimento dos governados e sustentado pela opinião organizada da humanidade.” Quando, poucos meses depois Wilson desembarcou na Europa, uma onda de ilimitada esperança espraiou-se por todo o continente. Eram as velhas esperanças dos séculos XVIII e XIX, apenas mais brilhantes que nunca.

O apelo de Wilson e a resposta que suscitou marcaram o ponto mais alto das aspirações morais originais do Iluminismo. Ele mostrou como, a despeito das dificuldades filosóficas que estorvavam os fundamentos das aspirações morais ostensivas, tais assertivas ainda podiam ser feitas, na prática, com o mesmo vigor com que eram declaradas nas regiões de influência anglo-americana.

Porém, as grandes esperanças que se espalhavam da beira-mar atlântica foram peremptoriamente rejeitadas pela intelligentsia niilista ou moralmente invertida da Europa Central e Oriental. Para Lênin, a linguagem de Wilson era uma grande piada; de Mussolini ou Goebbels, elas teriam provocado apenas zombarias. E as teorias políticas que esses homens e o pequeno círculo de seguidores estavam levantando na ocasião logo iriam colocar por terra os apelos de Wilson e os ideais democráticos de uma forma geral. Passados vinte anos, eles iriam estabelecer um sistema abrangente de governos totalitários por toda a Europa, com uma boa possibilidade de sujeição de todo o mundo a tais governos.

O enorme sucesso dos oponentes de Wilson deveu-se ao maior atrativo que suas idéias provocavam em muitas parcelas das nações européias orientais e centrais. Sem dúvida, a ascensão final ao governo desses opositores foi alcançada pela violência, mas não sem antes de a conquista de apoio suficiente dos diversos estratos da população, de modo que eles pudessem usar a violência com efetividade. As doutrinas de Wilson foram, em primeiro lugar, derrotadas pelo poder superior de convencimento dessas filosofias contrárias, e esse novo tipo de Iluminismo feroz continuou desde então a atacar incessantemente qualquer tipo racional e humano enraizado em solo europeu.

O colapso da liberdade que se seguiu ao sucesso desses ataques demonstrou de forma dura, em todos os cantos, aquilo que eu disse antes: a liberdade de pensamento perde sentido e tem que desaparecer onde a razão e a moralidade são privadas de seu status como forças por direito próprio. Quando um juiz num tribunal não pode mais apelar para a lei e para a justiça; quando nem as testemunhas, nem os jornais, nem mesmo os relatórios dos cientistas sobre seus experimentos podem falar a verdade como conhecida; quando, na vida pública, não há princípios morais que devam ser respeitados; quando se nega substância às revelações da religião e da arte; então, não há como um indivíduo qualquer possa assumir posição contra os mandantes de plantão. Essa é a lógica simples do totalitarismo. Um regime niilista tem que assumir a direção de todas as atividades do dia-a-dia, que são, por outro lado, guiadas por princípios morais e intelectuais que o niilismo declara nulos e vazios. Os princípios, assim, têm que ser substituídos por decretos e uma abarcante Linha do Partido.

Daí a razão de o totalitarismo moderno, com base numa pura concepção materialista humana, ser necessariamente mais opressor do que um autoritarismo forçado por um credo espiritual, por mais rígido que seja. Considere-se a Igreja medieval no que tinha de pior. A autoridade de certos textos que ela impôs permaneceu fixa por longos períodos de tempo e sua interpretação foi transposta para sistemas teológicos e filosóficos que se desenvolveram por mais de um milênio, de Santo Agostinho a São Tomás de Aquino. Não se requeria de um católico que mudasse suas convicções ou revertesse suas crenças a intervalos freqüentes, em deferência a decisões secretas de um punhado de altos funcionários. Além disso, uma vez que a autoridade da Igreja é espiritual, ela reconhecia outros princípios independentes. Conquanto impusesse inúmeras regras sobre a conduta individual, existiam outros aspectos intocados da vida, regidos por outras autoridades – rivais da Igreja – como reis, nobres, guildas, corporações. E o poder de todas elas era superado pela crescente força da lei; permitia-se também que uma boa dose de iniciativa artística e especulativa pulsasse livremente nesse sistema multifacetado.

A opressão sem precedentes do moderno totalitarismo tornou-se amplamente reconhecida na Europa continental de hoje e tem concorrido para abrandar um pouco a rixa entre os combatentes pela liberdade e os defensores da religião, que vem ocorrendo desde que o Iluminismo começou a se espraiar. O anticlericalismo não está morto, porém muitos que admitem as obrigações transcendentes e estão dispostos a preservar uma sociedade construída sobre a crença de que tais obrigações são reais descobriram agora que estão mais perto dos que acreditam na Bíblia e na revelação cristã do que dos regimes niilistas, que têm base na descrença radical. A história talvez venha a fazer menção às eleições italianas de abril de 1946 como ponto de inflexão. A derrota infligida aos comunistas por uma ampla maioria católica foi saudada com alívio imenso pelos defensores da liberdade em todo o mundo; por que, em ocasiões anteriores, tinham dado voz a todas suas esperanças com esse grito de guerra.

A mim parece que, no dia em que o cético moderno depositou pela primeira vez sua fé na Igreja Católica para resgatar suas liberdades contra o monstro Frankenstein que ele mesmo tinha criado, um vasto ciclo do pensamento humano completou uma volta inteira. A esfera da dúvida fora circunavegada. A empreitada crítica que originara a Renascença e a Reforma, e dera partida em nossa ciência, filosofia e arte, tinha amadurecido até o fim e chegara a seus limites definitivos. Começamos, assim, a viver num novo período intelectual que eu poderia chamar de era pós-crítica da civilização ocidental. O liberalismo hoje está se tornando consciente de seus fundamentos fiduciários e está formando uma aliança com outras crenças afins.

A instabilidade do liberalismo moderno se coloca em contraste curioso com existência pacificamente continuada da liberdade de pensamento ao longo de um milênio de antiguidade. Por que essa contradição entre liberdade e ceticismo jamais mergulhou o mundo antigo numa revolução totalitária como a do século XX?

Podemos responder que pelo menos uma dessas crises se desenvolveu quando diversos jovens brilhantes, aos quais Sócrates tinha introduzido na busca da inquirição desimpedida, desabrocharam como líderes dos Trinta Tiranos. Homens como Cármides e Crítias eram niilistas, adeptos conscientes da filosofia do assalte-e-domine que derivaram da educação socrática; e por conta da qual Sócrates foi contestado e executado.

Contudo, é fácil ver que tais conflitos jamais foram tão violentos e tiveram tal alcance como as revoluções do século XX. Faltou um elemento passional na antiguidade: a paixão profética do messianismo cristão. As inextinguíveis sede e fome pela retidão, que nossa civilização carrega no sangue como herança do cristianismo, não permitem que nos estabilizemos à maneira dos estóicos antigos. O pensamento moderno é uma mistura de crenças cristãs e dúvidas gregas. Tais crenças e dúvidas são, logicamente, incompatíveis, e o conflito entre elas tem mantido o Ocidente vivo e criativo de modo sem paralelo. Todavia, tal mistura é uma fundação instável. O totalitarismo moderno é a concretização da rixa entre religião e ceticismo. Ele resolve o problema ao incorporar nossa herança de paixões morais num quadro de propósitos materialistas modernos. As condições para tal solução não estavam presentes na antiguidade, antes que o Cristianismo tivesse incendiado os corações da humanidade com novas e vastas esperanças morais.
(POLANYI, Michael. Capítulo 7 - Perigos da Incorência. página 155-178. A Lógica da Liberdade. Editora Topbooks)

1 comment:

Anonymous said...

Nossa vou imprimir este texto e ler com calma. E passar mais vezes por aui também. Até+

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