Friday, June 29, 2007

Queda-de-braço com Deus - Jerônimo Teixeira / Arturo Mari/AFP

Os ateus fazem sua propaganda em livros
que provocam os fiéis e afirmam que pode
existir sentido em uma vida sem religião



Quando o astrônomo e matemático francês Pierre-Simon de Laplace apresentou seu Tratado de Mecânica Celeste a Napoleão Bonaparte, o imperador estranhou uma ausência naquela laboriosa aplicação da física de Isaac Newton ao movimento de planetas e estrelas. Por que, quis saber Napoleão, Laplace não mencionava Deus? "Eu não precisei dessa hipótese", foi a resposta do astrônomo. Deus saía de cena na ordem celeste – e mais ou menos sessenta anos depois, com a publicação de A Origem das Espécies, de Charles Darwin, em 1859, a hipótese divina também era dispensada para explicar a vida sobre a Terra. Deus não cedeu espaço na moral, na cultura, na sociedade, nem mesmo na política. Mas a ambição de expulsá-lo de vez – e, com Ele, padres, pastores, imãs, rabinos – de todos os recessos da existência vem ganhando expressão em vários livros recentes. O proselitismo ateu anda forte nas livrarias, com um elenco preeminente e variado de autores abrindo fogo contra os fiéis: o biólogo inglês Richard Dawkins, o filósofo americano Daniel Dennett, o jornalista inglês Christopher Hitchens e o filósofo francês Michel Onfray. Os livros de Hitchens e Dawkins vêm freqüentando listas de mais vendidos nos Estados Unidos, e Onfray vendeu 200.000 exemplares de seu Tratado de Ateologia (tradução de Monica Stahel; Martins Fontes; 214 páginas; 39,80 reais) na França. Será incorreto imaginar que há uma onda de descrença varrendo o mundo. Esses livros são sobretudo uma reação – às vezes exagerada, alarmista até – a um certo recrudescimento da religião, em suas versões mais fanáticas, no mundo pós-11 de Setembro.
O caráter reativo dessas obras se revela no tom. Distintas na forma e nos pressupostos, todas têm uma tendência um tanto infantil à provocação. Em uma resenha do livro Quebrando o Encanto (tradução de Helena Londres; Globo; 456 páginas; 39 reais), de Daniel Dennett, publicada no The Washington Post, o teólogo Jack Miles, autor de Deus, uma Biografia, observou que às vezes o filósofo darwinista parece estar puxando os crentes para a briga, como quem diz "vamos acertar isso lá fora". E o livro de Dennett é o menos exaltado – chega até a propor o diálogo com os religiosos moderados. Amigo de Dennett, Richard Dawkins mostra-se mais virulento já no título, The God Delusion (Deus, um Delírio, a ser lançado no Brasil em agosto, pela Companhia das Letras). Radical, ele não aceita nenhuma divisão de terreno, na linha "a ciência trata do mundo físico, e a religião, do espiritual". Argumenta que a religião nunca se contenta nos limites do mundo espiritual. Todas as igrejas fazem afirmações sobre o universo físico, postulando a existência de milagres e intervenções divinas (quando foi baleado em um atentado, o papa João Paulo II afirmou que a mão de Nossa Senhora de Fátima o salvou. Dawkins prefere dar crédito ao time de cirurgiões que operou o sumo pontífice). Christopher Hitchens, em God Is Not Great (Deus Não É Grande, a sair em outubro, pela Ediouro), leva um argumento semelhante ao campo político: seria ilusório imaginar que a pregação de padres, rabinos e imãs só se estende aos fiéis, que não interfere em nada no dia-a-dia das sociedades seculares. As religiões estão sempre tentando influenciar políticas públicas, especialmente quando questões morais e sexuais estão em jogo. Aliás, Hitchens, com sua peculiar ironia, se refestela ao tratar da obsessão religiosa por pureza sexual: "Os lunáticos homicidas do 11 de setembro foram talvez tentados pelas virgens do Paraíso islâmico, mas o mais revoltante é que, como muitos de seus camaradas de jihad, eles mesmos eram virgens".
A questão fundamental levantada pelo ateísmo, porém, está além dos embates entre cientistas e sacerdotes ou da tensão entre a Igreja e a sociedade laica. É um território minado da filosofia: a existência de Deus não pode ser comprovada, mas tampouco há como negá-la. O filósofo americano Richard Rorty (morto no início de junho), em um ensaio de O Futuro da Religião (Relume-Dumará) – livro em co-autoria com o italiano Gianni Vattimo –, chega a dizer que essa é uma "questão ruim": não pode ser decidida e, portanto, deve ser abandonada. Rorty preferia declarar-se anticlerical, e não ateu, pois "o anticlericalismo é uma perspectiva política, e não epistemológica ou metafísica". Dawkins arrisca-se nessa área de indecisões: sim, ele admite, é impossível negar Deus, mas nem por isso ateísmo e teísmo são hipóteses equivalentes. A evolução parte de elementos simples para chegar a formas complexas como o olho ou o cérebro humano. A hipótese teísta seria uma inversão dessa lógica: coloca uma inteligência complexa como origem de todo o universo. Não se trata, portanto, de dizer que Deus não existe: ele seria apenas muito, muito improvável.
Darwin é a referência fundamental de Dawkins, e Dennett também recorre ao filósofo escocês David Hume. Hitchens às vezes cita O Futuro de uma Ilusão, a crítica de Sigmund Freud às religiões. Friedrich Nietzsche, o alemão que se propôs a derrubar a moral judaico-cristã com seu martelo filosófico, só aparece marginalmente nesses autores – mas é fundamental para Michel Onfray. O francês contesta o famoso slogan de Assim Falou Zaratustra, "Deus está morto". "Não se mata uma ficção", diz Onfray. Mas Onfray reconhece em Nietzsche a fundação para "uma outra moral, uma nova ética, valores inéditos". Ao contrário dos outros livros, Tratado de Ateologia traz um antiquado ardor utópico, ainda que de contornos vagos. A crítica ao islamismo é um ponto forte – e polêmico – do livro. "O Corão não permite a religião à la carte", diz Onfray. Ou seja, o muçulmano não pode fazer como os cristãos e judeus modernos, que tendem a escolher os preceitos que vão ou não seguir nos textos sagrados. O Islã seria "estruturalmente arcaico" e totalitário.
Onfray recupera figuras obscuras da história das idéias, como Jean Meslier (1644-1729), um abade que rompeu com a Igreja para escrever panfletos anti-religiosos que estariam entre as primeiras obras de franco ateísmo da história. A palavra "ateu" sempre foi usada para caracterizar heresias ou crenças desviantes. A negação efetiva de Deus, porém, era uma impossibilidade teórica no mundo imerso em religião anterior ao Iluminismo. A historiadora da religião Karen Armstrong diz que ateus de fato só começam a surgir no fim do século XVIII. Não é de estranhar que o recente ensaísmo de propaganda atéia busque uma certa coloração heróica: o ateu, afinal, é uma criatura relativamente recente sobre a face da Terra, e como tal ainda tem de se afirmar.
Dawkins, Onfray e Hitchens deixam a sugestão temerária de que o mundo seria melhor sem religião. Eis outra hipótese que simplesmente não pode ser testada. O que se pode afirmar, porém, é que a crença em Deus não é necessária para uma vida correta. A moral não é, como Nietzsche sugeria, uma impostura do cristianismo: o senso do certo e do errado, do justo e do injusto, transcende as religiões e, em certa medida, está impresso na natureza humana. Dennett observa que mesmo um ateu pode e deve cultivar valores sagrados, como a verdade, o amor, a democracia. E uma vida sem Deus tampouco precisa ser vazia de sentido, como bem demonstrou o filósofo galês Bertrand Russell: "Eu acredito que, quando eu morrer, irei apodrecer, e nada do meu ego sobreviverá. Mas me recuso a tremer de terror diante da minha aniquilação. A felicidade não é menos felicidade porque deve chegar a um fim, nem o pensamento e o amor perdem seu valor porque não são eternos".
"A Santíssima Trindade é acompanhada pela Virgem Maria, uma deusa de fato, embora não seja chamada assim. O panteão católico é inflado ainda pelos santos, que, se não são semideuses, têm poderes de intercessão em áreas especializadas que incluem dores abdominais, anorexia, desordens intestinais. O que me impressiona na mitologia católica é não só a sua qualidade kitsch, mas também a falta de vergonha com que essa gente fabrica as coisas no andar da carruagem. É tudo despudoradamente inventado."
Richard Dawkins, biólogo inglês, em The God Delusion


"Cerca de 150 versículos do Corão justificam e legitimam a guerra santa, o jihad. É o suficiente para fazer naufragar as duas ou três frases muito inofensivas que exortam à tolerância ou à recusa da coação em matéria de religião (!). Em tal oceano de sangue, quem pode ainda se dar ao trabalho de se deter nas duas ou três frases que exortam à humanidade e não à barbárie?"
Michel Onfray, filósofo francês, em Tratado de Ateologia

Shannon Stapleton/Reuters

"Nem é preciso dizer que nenhum dos eventos repulsivos e desordenados que o Êxodo narra aconteceu. Não houve fuga do Egito, nem peregrinação pelo deserto, e nem a conquista dramática da Terra Prometida – (...) os horrores e crueldades e loucuras do Velho Testamento. E quem – a não ser por sacerdotes antigos que exercem o poder através do método consagrado da imposição do terror – poderia desejar que esse novelo emaranhado de fábulas seja verdadeiro?"
Christopher Hitchens, jornalista americano, em God Is Not Great

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