Friday, July 13, 2007

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"Que as ovelhas tenham rancor às grandes aves de rapina não surpreende: mas não é motivo para censurar às aves de rapina o fato de pegarem as ovelhinas. E se as ovelhas dizem entre si: "essas aves de rapina são más; e quem for o menos possível ave de rapina, e sim o seu oposto, ovelha - este não deveria ser bom?", não há o que objetar a esse modo de erigir um ideal, exceto talvez que as aves de rapina assistirão a isso com ar zombeteriro, e dirão para si mesmas: "nós nada temos contra essas boas ovelhas, pelo contrário, nós as amamos: nada mais delicioso do que uma tenra ovelhinha". Exigir da força que não se expresse como força, que não seja um querer-dominar, um querer-vencer, um querer-subjulgar, uma sede de inimigos, resistência e triunfos, é tão absurdo quanto exigir da fraqueza que se expresse como força. Um quantum de força equivale a um mesmo quantum de impulso, vontade, atividade - melhor, nada mais é senão este mesmo impulso, este mesmo querer e atuar, e apenas sob a sedução da linguagem (e dos erros fundamentais da razão que nela se petrificaram), a qual entende ou mal-entende que todo atuar é determinado por um atuante, um "sujeito", é que pode parecer diferente. Pois assim como o povo ditingue o corisco do clarão, tomando este como ação, operação de um sujeito de nome corisco, do mesmo modo a moral do povo discrimina entre a força e as expressões da força, como se por trás do forte houvesse um substrato indiferente que fosse livre para expressar ou não a força. Mas não existe um tal substrato; não existe "ser" por trás do fazer, do atuar, do devir; "o agente" é uma ficção acrescentada à ação - a ação é tudo. O povo duplica a ação, na verdade; quando vê o corisco relampejar, isto é a ação da ação: põe o mesmo acontecimento como causa e depois como seu efeito. Os cientistas não fazem outra coisa, quando dizem que "a força movimenta, a força origina", e assim por diante - toda a nossa ciência se encontra sob a sedução da linguagem, não obstante seu sangue-frio, sua indiferença aos afetos, e ainda se livrou dos falsos filhos que lhe empurraram, os "sujeitos" (o átomo, por exemplo, é uma dessas falsa crias, e também a "coisa em si" kantiana) não é de espantar que os afetos entranhados que ardem ocultos, ódio e vingança, tirem proveito dessa crença, e no fundo não sustentem com fervor maior outra crença senão a de que o forte é livre para ser fraco, e a ave de rapina livre para ser ovelha - assim adquirem o direito de imputar à ave de rapina o fato de ser o que é...Se os oprimidos, pisoteados, ultrajados exortam uns aos outros, dizendo, com a vingativa astúcia da impotência: "sejamos outra coisa que não os maus, sejamos bons! E bom é todo aquele que não ultraja, que a ninguém fere, que não ataca, que não acerta contas, que remete a Deus a vingança, que se mantém na sombra como nós, que foge de toda maldade e exige pouco da vida, como nós, os pacientes, humildes, justos" - isto não significa, ouvido friamente e sem prevenção, nada mais que: "nós, fracos, somos realmente fracos; convém que não façamos nada para o qual não somos fortes o bastante'; mas esta seca constatação, esta prudência primaríssima, que até os insetos possuem (os quais se fazem de mortos para não agir "demais", em caso de grande perigo), graças ao falseamento e à mentira para si mesmo, próprios da impotência, tomou a roupagem pomposa da virtude que cala, renuncia, espera, como se a fraqueza mesma dos fracos - isto é, seu ser, sua atividade, toda a sua inevitável, irremovível realidade - fosse um empreendimento voluntário, algo desejado, escolhido, um feito, um mérito. Por um instinto de autoconservação, de autoafirmação, no qual cada mentira costuma purificar-se, essa espécie de homem necessita crer no "sujeito" indiferente e livre para escolher. O sujeito (ou, falando de modo mais popular, a alma) foi até o momento o mais sólido artigo de fé sobre a terra, talvez por haver possibilitado à grande maioria dos mortais, aos fracos e oprimidos de toda espécie, enganar a si mesmos com a sublime falácia de interpretar a fraqueza como liberdade, e o seu ser-assim como mérito. (Nietzsche. 13, Primeiro Tratado, A Genealogia da Moral).

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