Saturday, May 31, 2008

Marcel Proust: Em busca do tempo perdido.

Hoje em dia, “como ler um romance” trauz-se, para mim, em como ler Proust, esplendor do romance clássico. O que fazer diante da extrema inventividade de Em busca do Tempo Perdido?
O vasto romance de Proust é narrado pelo quase inominado Marcel, um retrato do romancista (principalmente) quando jovem, relatando emaranhadas recordações da sociedade francesa, desde a última década do século XIX até 1922 (ano da morte de Proust). Os grandes temas do romance, listados em ordem alfabética, incluem amizade, beleza, bordéis, o Caso Dreyfus (e a imersão no anti-semitismo), ciúme (acima de tudo!), costumes, esteticismo, indumentária, inversões (homossexualismo masculino e feminino), literatura e a gradual evolução do narrador-romancista, mar, memória (tão prevalecente quanto o ciúme), mentira, os mortos (anexos aos vivos), sadomasoquismo, sono e tempo (tão onipresente quanto ciúme e memória).
Em busca do Tempo Perdido relata três histórias de amor (erotismo talvez seja o termo mais adequado). Carlos Swann, “colunável” de origem judaica, torna-se eroticamente obcecado por Odette de Crecy, com quem, finalmente se casa, após sofrer os tormentos do amor e do ciúme. A filha do casal, Gilberta, antes de se casar com Saint-Loup, que fora apaixonado por uma atriz chamada Raquel, é a primeira paixão do narrador Marcel, melhor amigo de Saint-Loup. Gilberta Swann é apenas uma precursora da grande paixão do narrador, Albertina Simonet, com quem Marcel tem um longo e complicado caso de amor, que culmina na fuga da mulher, e subseqüente morte em um acidente eqüestre.
Por mais maravilhosos que sejam os relatos de Proust acerca do sofrimento causado pelo ciúme de Swann, com relação a Odette, e pelo ciúme de Saint-Loup, com relação a Raquel, a apoteose do que poderíamos chamar “ciúme sublime” é alcançada na retrospectiva busca do tempo perdido, empreendida por Marcel, no que concerne aos relacionamentos homossexuais de Albertina, em que esta “trai” o amante possessivo. É preciso recorrer à Bíblia, a Shakespeare e a Dante para encontrar exemplos à altura da energia, da intensidade e do sofrimento do narrador, em busca do Norman Mailer chamaria “o tempo da vez de Albertina”. A tragicomédia shakespeariana, como em Medida por Medida e Tróilo e Créssida, é o que mais se aproxima da extraordinária ironia e do fascinante azedume característicos da grande busca de Marcel.
Atualmente, correm rumores de que o inominado narrador (nas 3.300 páginas do romance, apenas duas vezes chamado, ironicamente, de Marcel) é um subterfúgio de Proust, sendo o referido narrador heterossexual e cristão. São rumores estúpidos; os gays e as lésbicas que habitam as páginas do romance, assim como os judeus e os defensores de Dreyfus, ganham em simpatia, como resultado do aparente desinteresse do narrador (o próprio Proust era homossexual, partidário de Dreyfus e filho de querida mãe judia). Falando pelo magnífico autor, o narrador tem o privilégio de apresentar a mais extensa, vital e variada constelação de personagens a ser encontrada fora da obra shakespeariana. Saber ler romance, e Proust, especificamente, antes de mais nada, é saber ler e apreciar personagens literários. Em ordem alfabética, as personalidades indispensáveis a Proust são Albertina, Charlus, Françoise, Oriane Guermantes, a Mamma do narrador, Odette, Saint-Loup, Swann Verdurin (Madame). Se acrescentarmos uma décima personalidade, o próprio narrador, teremos um elenco mais expressivo, interiorizado e titanicamente cômico do que o de qualquer outro romance. O cosmo de Proust é tão irônico quanto o de Jane Austen; contudo, a ironia proustiana é menos defensiva e, talvez, menos um alicerce da invenção artística. Podemos dizer que, em Proust, ironia não é dizer algo cujo verdadeiro significado difere do conteúdo óbvio das palavras, mas, antes, é fazer os prenúncios que são amplos demais para caber em qualquer contexto social específico. Tais prenúncios tocam os pontos mais remotos da nossa consciência, e bucam os nosso princípios de como agir corretamente. Parece estanho considerar mística, ou quietista, essa ironia, mas, com efeito, trata-se de um correspondente secular da mais profunda espiritualidade. Não quero aqui confundir Proust e Krishna, no Bhagavad Gita, mas a memória proustiana, em ultima análise, parece um correto curso de ação, que cura o narrador, bem como o leitor, de um mal que a mencionada obra hindu denuncia como “inércia sombria”. Lemos romances (os grandes romances) como um tratamento contra a inércia sombria, enfermidade que nos leva à morte. O nosso desespero requer consolo, e a terapria de uma narrativa profunda. O personagem, no romance de Proust, assim como na obra de Shakespeare, realiza a cura que lhe é implicitamente prescrita pela cultura literária. Vivemos um momento de terrível ironia, quando uma cultura que fracassa em todos os seus aspectos conceituais – na filosofia, na política, na religião, na psicanálise, na ciência – vê-se compelida a se tornar literária, ao estilo da antiga Alexandria. Proust, assim como Shakespeare, médico mais perito do que Freud, oferece-nos personagens tão humanos quantos os de Chaucer e Shakespeare. Todos os personagens de Proust são, essencialmente, gênios cômicos, como tal, dão-nos a opção de acreditar que a verdade é tão engraçada quanto cruel.
Nietzsche, em uma de suas formulações mais hamletianas, adverte que só encontramos palavras para expressar o que já está morto em nossos corações, de maneira que o ato da fala sempre traz em si um ato desprezível. Proust, ao contrário de Shakespeare, é imune a esse desprezo, e seus grandes personagens expressam a generosidade do autor. A inércia em nossos corações, o nosso egoísmo, é questão séria, manifestada mais através do ciúme do que de qualquer outro sentimento humano, tanto em Proust quanto em Shakespeare. Atrevo-me a dizer que, hoje em dia, ler romances traz alivio à inveja, cuja expressão mais virulenta é o ciúme de natureza sexual. Uma vez que os dois autores ocidentais que melhor dramatizam o ciúme são Shakespeare e Proust, a questão de como ler o romance pode ser reduzida, provisoriamente, a como ler o ciúme. Às vezes, penso que a melhor instrução literária passível de se oferecida a meus alunos, em Yale ou na Universidade de Nova Iorque, será tão somente um aperfeiçoamento da experiência de que os mesmos já dispõem, em termos de ciúme sexual, a mais estética de todas as enfermidades psíquicas, como Iago bem o sabia. Deve ser por isso que Proust compara as buscas dos amantes ciumentos às obsessões do historiador da arte, como se vê quando Swann reconstitui os detalhes da vida sexual pregressa de Odette, “com mais paixão do que o esteta que interroga os documentos subsistentes da Florença do século XV, a ver se penetra mais avante na alma da Primavera, da Bella Vanna, ou da Vênus de Botticelli”. Supostamente, para historiadores da arte, essa pesquisa é prazerosa, ao passo que o pobre Swann, “sem nada lhe dizer, olhava-a pensativo”. No entanto, o sofrimento de Swann provoca-nos um prazer cômico, ainda que estremeçamos. Talvez, ler, em ficção, relatos da agonia causada pelos ciúme não nos livre de similares angústias, e, talvez, jamais nos ensine a adotar uma perspectiva cômica aplicável a nós mesmos, mas o prazer solidário que a leitura nos traz parece constituir, em si, a natureza, noção crucial em Conto do Inverno, que compete com Otelo na expressão da visão shakespeariana do ciúme de ordem sexual. Proust não nos transforma em Iagos, à medida que lemos o romance, mas deleitamo-nos com a autodestruição do narrador, pois, em Proust, todo personagem central, especialmente Marcel, torna-se seu próprio Iago. Dos vilões shakespearianos, Iago é o mais criativo, no que tange à instigação de ciúmes na vítima, nesse caso, Otelo. A genialidade de Iago é a de um grande dramaturgo que sente satisfação em atormentar e mutilar seus personagens. Em Proust, muitos protagonistas são exemplos de Iagos que se voltam contra si mesmos. O que poderia causar mais prazer estético do que um bando de Iagos que praticam automutilação? Meu trecho predileto de toda a obra de Proust ocorre depois da morte de Albertina, a amada do narrador, e resulta da minuciosa investigação que este faz de cada detalhe das paixões homossexuais da mulher:
Albertina já não existia; mas era a pessoa que me havia escondido seus relacionamentos com mulheres, em Balbec, e que imaginava ter conseguido me manter ignorante quanto à questão. Quando consideramos o que há de acontecer conosco após a morte, não é o nosso “eu” vivo que, erroneamente, ao fazê-lo, projetamos? Será mais absurdo, afinal, lamentar que uma mulher que já não existe desconhece ter vindo à tona o que ela fazia seis anos atrás, ou desejar que o público fale bem de nós daqui a um século, quando estivermos mortos? Se o segundo caso tem mais fundamento que o primeiro, o arrependimento, retrospectivo, do meu ciúme partiu do mesmo erro de visão que produz no homem o desejo da celebridade póstuma. Todavia, se a impressão da natureza solene e irrevogável da minha separação de Albertina, momentaneamente, suplantou a idéia que concebi de suas más ações, a mesma impressão serviu tão somente para agravá-las, conferindo-lhes um caráter irremediável. Vi a mim mesmo perdido na vida, como em uma praia infinita, onde estava só e onde jamais a encontraria, seguisse eu em qualquer direção.
“Como ler o romance” pode ser resumido a “como ler esse trecho”, epítome da Busca de Proust, e, portanto, modelo do romance tradicional. A noção de Proust concernente ao ciúme, bastante shakespeariana, é que, de fato, trata-se de uma busca do tempo perdido, e do espaço perdido também. Otelo, Leontes, Swann e Marcel cometem “o mesmo engano visual”, o ressentimento nutrido por ciúme que os faz pensar que já não haverá tempo suficiente, nem espaço, para desfrutarem, respectivamente, de Desdêmona, Hermione, Odette e Albertina. Esse ressentimento é mais uma expressão da grande afronta: a morte do amante, em lugar da amada. Como escritor, necessariamente, Proust almeja a imortalidade literária, que se reduz à aprovação do público-leitor um século após a publicação da obra. Os Sonetos shakespearianos chegam perto de uma associação entre o ciúme (de natureza sexual) e a inveja (de poetas rivais), mas somente Proust atribui ambas as expressões de ressentimento ao tão bem definido “engano visual”, sem dúvida, como diria Nietzsche, um dos erros da vida necessários à vida. Ao ler Proust compreendemos nossos próprios enganos visuais, a mesquinhez dos nossos ciúmes, mas também a nossa necessidade de metáfora, de ler mais um romance. Grande comediante do espírito, Proust hoje parece ter antecipado o peso do nosso atraso, de termos chegado tardiamente à história, no milênio. Proust definiu a amizade como “o ponto intermediário entre a exaustão física e o tédio mental”, e disse que o amor é “um exemplo perfeito do pouco que a realidade significa para nós”. Enquanto Nietzsche adverte que a mentira é exaustiva, Proust celebra a “mentira perfeita”, uma abertura ao novo. Referi-me, anteriormente, à rápida diminuição do número de leitores (sérios) do romance, e percebo, relendo Proust, que fuga do romance é uma rejeição da literatura sábia. Onde mais poderemos encontrar a sabedoria?
A sabedoria de Proust não é a de George Eliot, nem a de Jane Austen, mas parece existir um saber comum aos grandes romancistas, algo que poderíamos denominar “pragmatismo romanesco”, segundo o qual o verdadeiro diferencial é aquele característico dos mestres da ficção em prosa. Sobre a morte, Proust observa que ela cura o nosso anseio pela imortalidade, o que talvez seja uma ironia cruel demais para Eliot e Austen, mas que, legitimamente, leva adiante a batalha de ambas contra as ilusões. Com maior aprofundamento, Proust discerne inúmeros meios de nos dizer que eu e sociedade são irreconciliáveis, o que não significa que sejamos meros engodos, da linguagem oi dos contextos sociais. A nossa personalidade, como diz Proust, é um “múltiplo exército” , constatação implícita em George Eliot e visível em Proust, como convém ao “romance entre romances” por ele criado, que alcança um momento de verdadeira grandeza ao se atrever a definir a perdida Albertina como “grande deusa do Tempo”. Nós podemos dizer o mesmo com relação a Dorothea Brooke, personagem de Eliot em Middlemarch, ou Emma Woodhouse, idealizada por Austen, mas as respectivas criadoras não podiam fazê-lo; Proust ensina-nos a profetizar e a ter ciume, retrospectivamente, quando aprendemos a ver seus personagens como divindades do tempo, e insinua que as duas sensações são, na verdade, uma só. Os heróis e heroínas por ele criados são como os deuses em Homero, igualmente consumidos pelo ciúme e pela rivalidade.
A despeito do poder de cura de Proust, hoje não sou capaz de ler um romance como o fazia há meio século, quando me entregava àquilo que lia. Meu primeiro amor (se não me falha a memória) não foi uma menina de carne e osso, mas Marry South, personagem de Thomas Hardy em The Woodlanders, e sofri terrivelmente quando ela corta os lindos cabelos para poder vendê-los. Poucas experiências equiparam-se à realidade de se apaixonar por uma heroína, e pelo livro que conta a sua história. A chegada da velhice pode ser mantida pelo aprofundamento da visão que se tem de Proust. Como ler o romance? Com carinho, se o livro mostra-se capaz de abarcar o nosso afeto; e com ciúme, porque o romance pode se tornar a imagem dos nossos limites em termos de tempo e lugar, ainda que seja capaz de oferecer-nos a bênção proustiana: mais vida.

BOOM, Harold. “Como e por que ler”. Tradução: José Roberto O’Shea. Editora Objetiva, 2001.

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